domingo, 18 de setembro de 2011

Visita passado


Manhã em Maputo, na porta de entrada da minha casa vejo um louva-a-deus enorme.
Saio de casa, regresso de tarde, volto a sair de noite, durmo, saio para o serviço... o louva-a-deus continua lá. Enorme, verde, mãos em prece para o céu. Eu olho-o. Leontina, a empregada, sorri:
Ysh, sinhora tem muita sorte! Yuwi yuwi, receber visita assim mesmo?
Visita?
Ysh, sinhora não sabe? Isso aí, esse animal é visita, visita de antepassado, não afasta. Deixa ficar aí, ele mesmo sozinho vai embora.
E as visitas partilham-se com os amigos, com a familia:
Mãe, sabes que aqui na minha porta de entrada tenho um louva-a-deus enorme e...
A sério? Eu também! Tenho um tão grande na porta de entrada há mais de dois dias, nunca vi um assim.
Sério...?

Eu não sei, não sei mesmo como funcionam os espíritos e os deuses, ou as magias e feitiços.
Mas... dizem que cada vez que alguém morre uma estrela aparece no céu.
Eu guio-me por elas.
Dizem que uma morte é sempre um nascimento.
Dizem que os que morreram, os que amamos, os que nos amaram, nunca desaparecem do nosso lado.
Eu acredito.
Acredito nos espíritos das árvores, nos dos lagos, da água doce e da salgada, nos deuses que vivem nos olhos dos bebés e claro... nos que habitam os antepassados... os que já não vejo e os que ainda vivem.

Maputo. Estou sentada com amigos na esplanada do hotel Polana, tomamos a bebida que celebra o anoitecer:
Recebi mensagem para ir fazer campas, ysh, não respondi... Agora recebo outra: “Apenas para confirmar se recebeu a comunicação de cerimónia”.
Ysh, estas coisas não podemos ignorar!!
Ya... é pá estava a tentar mas não dá... Mesmo que não acredites não podes ignorar, porque qualquer coisa te acontece a partir daí, não importa o quê! Achas que foi cerimónia que não fizeste.
Ysh, eu só posso ir fazer campa. Brada, esse final de semana não tem groove, vou a Inharrime!

E esta situação eu vivi muitas vezes por toda a africa:
Nao tens filhos?- espanto
Nao queres ter filhos?!! - censura
Nao podes...? - tristeza
E também nas conversas nos bares, nas paqueras na praia
- Vamos fazer bebes castanhos?

Em africa prestamos culto. A fecundidade e a longevidade. Ao dinamismo e a energia das forças teluricas. Aos antepassados.
Por isso preciso de muitos filhos, por isso baptizo meus filhos com os nomes dos que ja morreram, tudo com o objectivo de ajudar meu espirito a viver mais tempo.
Porque, apenas uma pessoa com descendência se pode transformar em antepassado.

E aqui muitos conflitos se resolvem assim mesmo:
Ei, não sou da tua idade eu!
E o mais velho que está a pedir.

Sim, o “mais velho” viveu muitas luas, lutou muitas guerras, e tudo aquilo que tu vês, que te preocupa, os problemas em que tropeças e os prazeres nos quais te perdes... tudo ele já viveu. Tudo ele entende. E tu? Tu respeitas.

Os antepassados são os intermediários entre o homem e o deus e a comunicação com eles está presente no quotidiano de Africa. Rituais e cerimónias fazem parte dessa comunicação, quando se abre uma garrafa de bom vinho, ou uma cerveja, um cafe ou um cha de qualidade, as primeiras gotas são derramadas no chao, são oferecidas aos antepassados.
E aqui os mais velhos são os que curam, os que adivinham, os que comunicam com os deuses, os que lancam os ossos, as conchas, os dados.
Os mais velhos são os que sabem.

Eu? eu perco-me sempre nos caminhos de Africa... eu quero aprender com a sabedoria dos velhos...

Quero sorrir perante as dramaticas desilusoes de amor dos jovens. Sossegar as criancas que temem genuinamente a piscina funda.
Quero descansar os olhos, e caminhar sem pressa, porque sei. Porque sei que tudo passa, tudo vem, tudo se repete, tudo demora, e tudo está bem. Quero saber que e tudo igual.
Mas por agora, por agora quero o calor seguro dos conselhos. Todos queremos. Quero sentar na esteira como o “pai”, o “vovo”, o sabio de africa.
Esta religião, a que segue os antepassados, todos a temos, mesmo que não acredites.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Conta-se na ilha


Conta-se na ilha que os gigantes foram aqui aprisionados.
Conta-se na ilha que o piri piri é tão forte que serve de castigo às crianças e de afrodisíaco aos homens.
Conta-se na ilha que a água é tão transparente que podemos ver os peixes a nadar à nossa volta. A areia tão fina que amacia os pés a cada passo.
Conta-se na ilha que vivem nestas águas seres inofensivos como estrelas-do-mar e letais como tubarões.
Conta-se na ilha que quem se aventurar em barco pequeno encontra perto a ilha baptizada após a presença dos portugueses.
Conta-se na ilha que a vegetação é verde e selvagem.
Conta-se na ilha que as águas que separam Inhaca de Maputo enganam os marinheiros. Conta-se que o Índico suave se levanta em ondas que provocam o vómito dos que se divertem no barco.
Conta-se na ilha que a linha do horizonte é desejo sempre presente nos homens que sonham com a cidade.
Conta-se na ilha que aqui não se vive, deixa-se passar os dias, de olhos postos na água.
Conta-se na ilha que em maputo as roupas são mais bonitas, o canhú mais doce e a cerveja mais fresca. Conta-se que as mulheres são mais sensuais nas suas danças nocturnas.
Conta-se na ilha que os estrangeiros chegam mas sempre partem. Nas ilhas não se vive, deixa-se chegar a noite, embalado sempre pelos sons do mar.
Conta-se na ilha que se pode nadar para o outro lado, para terra. Não sabemos já quem conseguiu o feito, de que era feita sua pele e qual o tamanho dos pés, se era escamoso e barbatanudo o que atravessou a baía. Mas conta-se.
Conta-se na ilha que a mulher do dono do snack-bar, a que caminha com um cão que responde ao seu olhar, a que arrasta os pés na areia com a preguiça pesada de África; a que amarra a cintura as capulanas negras, a que te olha de frente sem medo, com os olhos vermelhos, conta-se que é feiticeira das noites de luar. Conta-se que na água frente a sua casa os peixes vêm à superfície respirar, como se tivessem em vez de guelras pulmões.
Conta-se na ilha que a estes lugares não se pertence, porque sempre se sonha com a travessia.
Conta-se na Ilha que estes são lugares entre lugares, onde o tempo não se desenrola da mesma forma…
Ilha é isso mesmo, um lugar entre lugares, perdido da terra vive apenas na água, mas não lhe pertence. Ilha depende de equilíbrio de marés, pode ceder aos tremores e caprichos da terra.
Eu gosto de pensar nestas zonas híbridas, entre mundos.
As zonas onde estamos mas não para ficar. Onde esperamos tempos e movimentos. As zonas onde o tempo se suspende em flutuares instáveis. Sim, é isso, a instabilidade. Todos nos encontramos na mesma instabilidade, no mesmo barco que balouça. E nestes lugares passamos todos alguns tempos do nosso tempo; nas paragens do chapa… na porta do café que ainda não abriu.
Passamos, escorregamos nos minutos. Em aeroportos, nos hotéis, nos destinos de viagens.
E é tão boa a maneira como todos ficamos mais inseguros, mais ansiosos… mas também mais descomprometidos, mais sorridentes talvez.
A zona de segurança foge-nos inevitavelmente das mãos nestes lugares. Fogem-nos os pés nas pedras que não conhecemos. Angulosas e cortantes ou polidas e escorregadias, eu não sei.
Eu adoro primeiras vezes, sim a sensação nervosa e excitante do que não conhecemos. A saída arriscada da zona de conforto. Os estados entre… entre coisas, antes de acontecimentos, quando esperamos algo que nos vai acontecer, quando esperamos, quando sabemos, quando estamos no mesmo momento de suspense.
Porque na verdade é sempre assim, não existe estar, mas sempre passar.
E na comunicação é também assim, mesmo quando a tomamos por certa, conhecida, constante, sabida, não é verdade, não funciona assim. Toda a comunicação é aproximação, estudo, escuta. De cada vez, de todas as vezes, se inicia algo, e sempre se age por tentativa.
Perco-me na ilha:
- O caminho para o mercado?
- Sempre em frente, mais ou menos 20 minutos.
Eu caminho sempre em frente, passados cinco minutos, talvez dez, encontro um pequeno mercado, e aí pergunto de novo:
- Mercado?
- É aqui.
- Não, mas… outro mercado…?
- Não tem outro.
- Mas disseram-nos que era uma caminhada de 20 minutos…
- Ah Ah Ah Ah Ah! Sim, porque falaram de passo de ilhéu, assim senhora veio directo? Nada! Ilhéu não faz assim. ilhéu da ilha mesmo? Ysh! Esse pára, descansa, conversa, discute o tempo e pergunta pela família, pode até sonecar na sombra do cajueiro, não tem caminho directo!
Eu perco-me na ilha, esqueço-me dos tempos e escrevo como se fosse sempre domingo, na espera morna de um dia útil que não vem.

domingo, 12 de junho de 2011

Quase para pouco


Falta quase para pouco.
Eu não sei bem – perdida nos caminhos criativos das línguas - o que esta expressão significa… mas sabe a Moçambique. É esta suspensão prometida no tempo, que para mim caracteriza bem o que sinto aqui. É uma sensação assim mesmo: “quase”. Uma espécie de optimismo sempre presente, uma promessa leve de concretização, um confortável “quase”, um adocicado “pouco”.
Sim, parece-nos que Moçambique ainda não é… mas não podemos dizer que lhe falta… enfim, precisamos apenas de mais um pouco.
Fecha os olhos e pensa num país. Experimenta. O que acontece? O que surge na tua mente? Que imagens se formam? Que cores, que sons, que sabores inventas por entre as memórias?
Eu não sei bem porquê mas sei que de Moçambique se sente a falta. Apenas isso. Desde que cheguei que me avisaram os amigos:
- A Moçambique não se vai, fica-se.
Moçambique é esquecer o dever, de pés mergulhados no morno Índico:
- Mano, peço ver óleo do carro.
- Ysh, senhora tá no mínimo mesmo.
- Sempre esqueço de ver isso.
- Mas agora enchi já, pode esquecer de novo.
Moçambique é superstição:
- Estamos a fazer este ritual para saber se tem xikwembo.
- E que é xikwembo?
- Xikwembo é espírito no corpo da pessoa.
- Espírito… mau?
- Bom, espírito que… que devemos tirar.
- Eu posso ter xikwembo?
- Podemos ver.
- Mas esse espírito é como?
- É… como antepassado que não foi cristianizado.
- Mas, na minha família antepassados são cristãos há muitas gerações.
- Então vai minha filha, tu não tens xikwembo.
Moçambique marca no olhar.
Como se depois de um passeio pela marginal de maputo já não houvesse outro pôr-do-sol senão aquele que acontece por detrás dos coqueiros.
E nós, portugueses, parece que levamos mesmo a peito isto de construir “junto ao mar”. Tantas estradas de Portugal, dos países de África que Portugal ocupou, das zonas da Ásia que Portugal viveu, tantas estradas são assim, tão em cima da água que em dias de maiores ventos as ondas batem os carros e salpicam as pessoas. Esta marginal, a de maputo está destruída pela erosão, cada dia mais o mar come o caminho que o homem insistentemente desenha na natureza. Todos os dias o homem pesa na estrada que construiu. Pesam os carros estacionados no passeio largo, as batidas fortes da passada dançada a dois nas noites mais quentes, os colmer e as mamanas que vendem da cerveja mais fresca, que assam o frango maior, que vendem a bajia mais picante.
A marginal de maputo cede, mas é desfile de festa e discoteca nos finais de semana.
Moçambique é o anoitecer laranja de África:
Ver da porta da cozinha a luz a mudar, o sol vermelho a desaparecer e a lua em quarto crescente a surgir. Debaixo dela a estrela mais brilhante, a primeira a aparecer. O céu ainda azul, a luz alaranjada no horizonte e o sfumatto romântico do fumo da poluição, desenham a magia da hora, esta hora em que o dia se transforma em noite.
- Aqui em Moçambique cão come pissoa!! Senhora não acredita? Come! Bem bem!
- Aqui em Moçambique parece que as noites e não chegam e os dias sobram!
- Eu quando cheguei perguntei como é que é? Qual é a regra? Como é que funciona? Qual a regularidade? Mas agora sei que em Moçambique isso não existe… depende.
Moçambique fica-nos na pele como marca de nascimento, mesmo a nós, os que não nascemos aqui.
Viajo. Viajamos. Mas todos lhe sentimos a falta, porque é assim eu não sei.
- É feitiço senhora! É essa areia vermelha que tem feitiço!
- Moçambique é uma noiva feiticeira, que te “engarrafa” o corpo mas não te oferece o coração!
- É! Para mim é esses homens casados que saem com a “catorzinha”, que apanham nas traseiras do serviço!
Moçambique é a memória forte dos tempos da libertação que surpreende os contextos:
- Eu, exercício físico só fiz na guerra!
- Tás a ver o que é comer carne e ficar a falar disso durante um mês?!!
- Na minha escola a minha sala tinha sempre carteiras! Eh pah eu mesmo era o primeiro a chegar e ia buscar as carteiras para lá, depois ficava de guarda. Era assim que tinhas de fazer! Mas eh pah, se entravam aqueles ninjas, ninjas mesmo nem dá para faitar… eh pah, aí só podes mesmo sentar na tua carteira e deixar eles levarem tudo. Depois vem prof. Tás tu ali na tua carteira, prof. Vem e leva, eh pah… fazer o que? Coisas de puto, né? Escola nos times era assim mesmo!
Moçambique é um pavão de madrugadas barulhentas…
- Às vezes acho que ser moçambicano é ser do mundo. Somos que nem uma esponja, estamos tão vulneráveis… e isso é bom, não estranhamos o banal, apesar de ainda querermos teimar em "conservar e tradições", o mozamba normal, fruto da criatividade, esperteza e bondade natural que este clima que nos abençoa nos dá, é facilmente o indivíduo mais culto do mundo. Sabemos tanto que até esquece-mos que sabemos, talvez seja por isso que temos tanto briefing na ponta da língua e voamos alto quando... estamos lá fora! É que lá fora há uma tendência de “idolizar” o criativo, o artista, o bem-sucedido, o músico, o jogador… aqui é apenas mais um, não melhor nem pior, é mais um para brindar a cerveja ao fim do dia e trocar estórias.
Moçambique é brinde, sim. É chapeiro e diplomata a gritar pela mesma equipa no jogo de futebol, a beber a mesma cerveja.
Moçambique é sempre sonhar com o regresso.
- Joana, essa tua viagem! Tu afinal regressas quando?
- Eh pah… sabes? Acho que… falta quase para pouco.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Coisas indianas


Acordo com o som da bomba eléctrica que puxa água para a casa. Oiço o guarda a varrer as folhas no quintal, e a empregada a falar com o cão:
- Camio? Camio tem fome? – desisti de repetir o nome do meu cão, Rami é palavra que não entra na cabeça de D. Leontina, e como os cães ao contrário de nós, não estão ligados aos significados das palavras mas apenas à intenção que a elas damos, ele abana a cauda quando ouve o seu nome, que seja Camio então!
Acordo com os sons de África, sim, acho que desde que cheguei a este continente que nunca mais soube o que é dormir até tarde. Claro, durmo até às 9 horas, e aqui é hora escandalosa, preguiçosa, hora já angulosa de sons e de calores que a ventoinha já não alivia.
Levanto-me e, logo embatendo contra os meus hábitos de privacidade mais europeus, ela está na porta do meu quarto, surpreendo-a à escuta e ela desculpa-se com um pedido:
- Senhora, não tem arroz, nem pó de caril não tem…
- Sim? Eu vou comprar.
- Mas, senhora, porque não vamos? Aqui mesmo na rua, aqui no mercado da Machava tem, eu vou com senhora, vamos juntas, eu lhe carrego saco, assim – no rosto uma expressão de vaidade orgulhosa - lhe seguindo, afinal não sou sua empregada? Yuh! Senhora nem parece que tem empregada assim de ir “suzinha “só? Nada, nem fica bem.
Eu não sei bem como explicar isto mas, para mim, caminhar num mercado de rua e discutir preços de montinhos de arroz, de caril, de limão ou cebola, em bancas infindáveis de coisas, no chão coberto de capulanas e ”mamanas” sentadas em agitada conversa em língua que desconheço, seguida por uma empregada que carrega o meu cesto… enfim, ainda não é para mim.
Como explicar que facilidade, esse conceito, na prática é isto mesmo, o que se relaciona com a nossa experiência e a nossa estória. O que não fazemos esforço de entender, isso sim é a facilidade. Por isso o que é fácil para ti pode não ser para mim. E por isso para mim, pelo menos por enquanto, é mais fácil ir a um supermercado e escolher das prateleiras as embalagens que já conheço, ler nas etiquetas os preços claros e inequívocos. 100 meticais, ok, eu entendo, pouco importa para mim que esteja a pagar uma marca, uma embalagem, uma importação da África do sul… para mim é mais fácil… e ser estrangeiro é isto mesmo, pagar pela deslocação do corpo, pagar o desenraizar do coração.
Por isso apesar das reclamações de Leontina eu saio para o supermercado, e lá escolho as minhas coisas.
Passada talvez uma hora eu regresso a casa, ela está à espera, de cara em sorridente suspense. Eu abro o caro e ela vê os maningue sacos. Entusiasma-se. De novo me arrependo de ter estas ajudas que são as empregadas. É inútil, eu para senhora colonial não tenho talento pah! Ainda me atrapalham os tempos do passar dos sacos, os jeitos no arrumar e desarrumar das coisas que comprei. Os desajeitados gestos de quem, naturalmente, manuseia coisas que desconhece.
A Leontina parece criança em dia de natal, agarra tudo com curiosidade e excitação, como se desembrulhasse presentes.
E eu, eu tenho pressa, mulungo sempre tem, e sou daquele tipo de pessoa que se vejo uma coisa a ser feita lentamente, ou de maneira diferente da que me satisfaz, vou lá e faço eu mesma, poupando minutos de explicações e tempos de hesitações. Eu prefiro ser eu a fazer. Mas aqui não tenho hipótese, e desde o iogurte ao sabonete íntimo, passado pela lixívia para roupa de cor tudo engelha a testa de Leontina, e ela desfia questões:
- Senhora, isso aqui é o quê?
E eu lá sigo em explicações… e confesso que algumas coisas são difíceis de explicar… ela pára em tudo, e diverte-se infantilmente com o que desconhece. Já provou dois iogurtes e agora morde desconfiadamente uma bolacha de arroz crocante. Continua a agarrar cada uma das coisas e pára inevitavelmente num saquinho de coisas pequeninas, coloridas, com o rótulo onde está escrito “Mukhwas - mouth freshner”:
- Senhora, e isso aqui?
- É, ysh…- aqui até para mim é difícil explicar:
- Isso aí… sabe aquelas coisas que se come depois da refeição… - ela olha-me interrogativamente:
- Hum? – eu tenho de novo,
- Conhece comida indiana?
- Indiana??!! De monhé?
- … sim…
- Ysh senhora não conheço…
- Pois, mas depois da comida indiana servem muitas vezes estas coisas para… - ela interrompe-me,
- Senhora são coisas indianas? Ok! – parece definição que lhe basta, e a partir daqui já não importa que encontra, se é amaciador para o cabelo ou pó de talco, ela olha-me e questiona:
- Senhora, assim isso aqui também são coisas indianas?
- Sim… sim… - em nome da paz do lar uma mentirinha inocente não faz mal.
É engraçado como catalogamos o que desconhecemos, como nos assusta que seja diferente, como nos conforta que possa ser resumido assim mesmo, com uma referência de naturalidade ou credo; podendo fazê-lo sem pudor associamos o tal misterioso desconhecido a um grupo étnico ou linguístico. E parece que todos as usamos de alguma forma, as generalizações
Anoitece, e a mim apetece-me mesmo comida indiana, escolho um dos muitos restaurantes da cidade de maputo.
-Senhora vai na cidade? Gosta dessa comida de monhé?
- Sim, gosto. – ela desdenha,
- Ok…
Depois da refeição pergunto por sobremesa, o empregado é moçambicano e faz parte daquele grupo de trabalhadores que desacreditam os seus empregadores:
- Senhora, sobremesa? Yowe yowe… eu só posso ir perguntar mas acho que aqui não tem, só mesmo aquelas coisas indianas…
Eu sorrio, é mesmo isso que me apetece.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Verbatim


Ele espanta-se:
- Ysh!
Ela pergunta:
- Já?
Ele responde:
- Ainda.
Ela afirma um quase riso, com gozo:
- He! He!
Ela confirma com espanto:
- Hã! Hã!
Ela pergunta:
- Ele é de láaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa?
Ele corrige as distâncias:
- Nada, é de láaaa!
Ele descreve:
- Uma camisete assim com escritas.
Ela critica:
- Esse tem mania!
Ele avisa:
- Moçambicano é manioso!
Ele comenta:
- Estão no pega pega.
Ela quer confirmação:
- Mas assim bem bem é o quê?
Ele planeia:
- Hoje? Mwinto mwinto beber!
Ele desconfia:
- Já é o quê?!
Gosto de escrever assim, palavra a palavra, verbatinamente.
Ela fala alto:
- Yowe! Yowe! Yowe!
Claro que na maioria destas vezes a comunicação verbal precisa de maior explicação, precisa de interpretação de sinais e definir de tempos. Aqui por exemplo, com esta expressão ela sorri, um sorriso divertido, cheio de cumplicidades, um sorriso que faz a cabeça abanar como quem não acredita bem no que comenta. Pois… o que isto custa a explicar por palavras!
- Boisse tou pidir dinheiro de chapa. – eu traduzia em português de Portugal por…. Não sei, talvez:
- Senhor, por favor pode me dar dinheiro para eu poder andar no transporte colectivo semi-privado?
Sei lá! Já não sei onde nos perdemos nestas formalidades do português. O de Portugal. Mas este português moçambicano é assim, é coisa de actor na sua forma falada. É coisa de adivinhador na sua escrita! É língua que precisa de olhos, de sobrancelhas, de bochechas, de ombros, de mãos! Imagine-se este diálogo entre moçambicano, português e brasileiro, mas em contexto virtual, sem acesso ao corpo que expressa a ideia por sons:
- Ele não conseguia vir!
- Atrasou?
- Você não entendeu?!
- Está a gozar?
- A gozar? Eu? Mas como?
- Ele veio fazer o quê?
- Como, “o quê”?
- Veio…
- Sim, ele veio ora!
- Que hora?
- Hum?
Sim, adoro a maneira como em português nos desentendemos. Sim, é desafio diário, o labirinto da língua. E como “portuguesa” muitas vezes me pedem as dicas, me incitam as correcções, mas… eu? Que sei eu da língua? Precisava de saber mais das ideias, do respirar lento ou rápido de um povo, da sua referência urbana ou rural, da sua vivência de paz ou guerra, de fartura ou fome.
A maior aprendizagem da minha vida ainda é esta – a do relativismo cultural.
E não falo apenas da oralidade: “sombra”, por exemplo, na minha cultura de origem, é palavra em geral de conotação negativa – sombra é treva, escuro, medo, perigo – mas aqui, em África, onde o calor queima sombra é… positivo.
E não me peçam para corrigir! Porque o português é coisa tão complexa, tão cheia de excepções que às vezes me parece abusivo que se fale de regras! Ou então vejamos: se o louco enlouquece, porque um maluco não maluquece? Ou porque não maluca?
Se ele vai à minha frente, porque não vem ele a minha trás?
Se ele que carrega é o carregador porque ele que rouba não é o roubador?
Se aquele ali só está a complicar, porque o que faz confusão não está a confusionar?
Se podemos congratular porque não parabenizar?
Se ela é dama porque não é ele damo?
Se com a namorada é namorar porquê com a dama não se chama damar?
E.. dos contágios e dos sons atropeladores, armadilhadores da língua e do verbo:
Ele é extragavante ou extravagante?
Descapotável ou descartável?
Colher de pau ou colher de pão?
Instância turística ou estância turística?
E como se chama mesmo a especialidade portuguesa? É bacalhau à gomo de sal?
E dos false friends dos estrangeirismos? – que na verdade em país com tanta língua diversa já nem sei bem que são!
Porquê aplication não é aplicação?
E balance não é balanço?
E se há empowerment porque não empoderamento?
Sim, e a mim apetece escrever assim, percorrendo todo o caminho dos sotaques, do calão, também dos dialectos, sim. Linguagem é isso e eu aceito já todos os acordos, os que, independentemente do que estudámos e escrevemos, são feitos na rua. Entre um pedido meu e uma resposta interrogada do outro eu reformulo tudo, em viagens de comunicação. O que eu quero é ser entendida.
E tantas vezes em África me perdi nos pormenores da expressão, equivocada entre ideias, sons, registos. Sim, para expressar este modo de falar é preciso descrever a maneira como as sobrancelhas se levantam em confirmação, como os ombros se juntam ao rosto acompanhando um “yUH!” Como quem diz “eu? Nem pensar”. É preciso descrever músculos e esqueletos, movimentos, contracções e descontracções de massa nos rostos e nos corpos
Com ela:
- Cátia, o teu nome é com C ou com K?
- Com C, com k… como preferires
Com ele:
- Mas, tu não te chamas Hamad?
- Sim.
- Mas aqui está Momad!
- Sim.
- Qual é?
- O que quiseres – alguém grita lá de dentro “Mohamed!”
- Venho já!
E mais do que isso, o registo dessa oralidade, a escrita é feita com um único objectivo, expressar um som, não importa se é caça ou cassa, já que os sons ditos são iguais…
Como me choquei eu, como tropecei nas aulas de Swahili (ou será Suaili?) quando tentava perceber que letras contém a palavra mbwa – cão. Sim, tenta dizê-la, não é mebua, é assim mesmo mbwa! Três consoantes seguidas – um som contínuo que se desenha na boca fechada, aberto apenas num final surpreendente.
São outras ressonâncias, são outros movimentos com a língua, com os dentes, com os lábios. As línguas de África trabalham de outros modos a boca e o ar.
Sim, sei que se arrepiam os puristas da língua, os guerreiros dos acordos, os defensores da supremacia do português, aquele, o que se fala em Portugal. Mas perdoem-me os que acham que uma das minhas funções aqui é corrigir… não o faço. Apenas porque o português que se fala em Moçambique é… desarmante. Eu perco-me na adaptação criativa dos termos, na conjugação tropeçante dos verbos. E se é poético usar na escrita desabensonhar, saibam que é hábito destas gentes esse fluir desgovernado entre um sentido da língua e a língua sentida, sim, aquele mesmo, aquele que os poetas e os eruditos usam nos livros, esse anda nas ruas, nas bocas das gentes.
Quando para dizer algo negativo eu uso o nome de planta amarga, que sabe mal na boca, eu encho minha linguagem – e já agora minha língua – de sabores:
- Olha, então kacana!
E muitas vezes a conjugação verbal desajustada revela isso mesmo – um pensamento inexacto, inverdadeiro:
- Estou a vir – significa habitualmente “estou a mentir”
Aqui em Moçambique não chove chuva miudinha, não, aqui “Chovinha”.
E se “ele se acha!” não pensemos que come “axar”. Porque são “axares” diferentes, são temas opostos - é distante a língua doce e picante, oleada pelo axar de manga; da língua atrevida, venenosa até, quem sabe, de quem se acha “o tal”!
E se é bem expressivo o “não me erres!”, é delicioso o “Imbabável” e optimista o “falta quase para pouco”. Quanto ao “coroação” (do afrancesado croissant), para mim acerta “na mouche”, com um galão a acompanhar dá-me isso mesmo, aquece o coração no conforto emocional que Moçambique me dá assim mesmo, “na palma da mãe”.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Noites djezz


Vamos de jipe ver os terrenos, as machambas, os cultivos nos arredores da cidade, o telefone toca:
- Olá prima! Sim, tudo bem? Ysh, primo desapareceu? Mas talvez amanheceu lá, há-de vir. Ah, desapareceu desde 6ª feira… hum… ok… Eu… não sei de nada prima, mas vou ver… vou ligar amigos… sim, vai aparecer ele.
Ele percorre a lista de contactos e faz uma chamada:
- Neguinho! Primo desaparece, prima está preocupada, não lhe viste?... Na 5ª? Nada… ele desapareceu na 6ª… ok, pergunta lá bradas… ya… temos que trabalhar em busca e captura!
Mais uma volta na lista de contactos, mais uma chamada:
- Irmão! Nosso primo desapareceu… ya… não voltou… ya, DESde! Nada pah, é sério, prima está muito preocupada, é domingo hoje pah!... ya… mas não estiveste com ele?... sim, bebeu né? Claro! Deve estar grosso DESde!
Os finais de semana em Moçambique não variam… na 5ª feira eu bebo sabe-se lá quanto; saio de casa a hora indefinida e vou curtir não sei para que sítios. Danço não me lembro que músicas e conheço ignoro que caras; volto para casa a hora desconhecida, dirigindo sabe deus como. Estaciono de inimaginável maneira… e acordo no dia seguinte com uma babalaze que só eu sei. Mais, desconsigo lembrar-me dessa noite. Se me diverti ou se sofri é mistério para mim. Remexo a carteira à procura de pistas como uma esposa desconfiada de traição do marido… nada, nem um recibo, nem uma nota, uma moeda, um sinal… o celular toca:
- Olá!
- … olá…
- Tudo bem? Sabes quem é? Não te lembras de mim, de ontem?!
- Claro que me lembro…! De ontem… - minto. Não me lembro nada.
Sim, moçambicano gosta de beber, sentar e beber, beber, beber. Mas desenganem-se que seja coisa que se receba com a nacionalidade. Dizem-me todos os expatriados; os imigrados; os que trabalham nas ONG e os das cooperações internacionais; os voluntários e os dos contratos milionários; os que se hospedam nas guest house de segunda e os que vivem nas flats tipo 4 da avenida Julius Nyerery; os que andam de chapa e os que se deslocam com motorista - dizem-me desde que entrei em África! - os representantes das nações unidas do Malawi; os gerentes de hotéis luxuosos no Sudão; os militares portugueses em Adis Abeba; os voluntários britânicos; as missionárias italianas; as educadoras suecas; os mergulhadores canadianos – em África bebe-se!
Ele continua as chamadas de “busca e captura “do primo:
- Alô galera! Viste primo? Desapareceu ele… nem lhe viste este final de semana… sim, é coisa de saias isto… lógico… ok, liga lá pessoal, ok… aguardo.
Acontece pela cidade, à 3ª feira no Gil Vicente:
- Posso ter teu contacto?
- Ya, 82…
- Amanhã ligo-te ok?
- Ya, depois das 12! – no dia seguinte ele liga, combinam encontro, ela está no sítio certo, mas não o vê, aproxima-se um rapaz:
- Olá, não me estás a reconhecer?
- Não… tu és a pessoa de ontem?! Nãaaao! Sorry lá.
Ele faz mais uma chamada ao gang habitual da curte:
- Tio, como é? Tio, meu primo não voltou para casa este final de semana… Ah! Ah! Ah! Ah! Parece Mcel, desligou-se na 6ª e nem deu mais sinal… celular nada… barracas habituais nada, já procuraram… Sabes de alguma coisa…? Nada, eu não lhe vi, eu não saí, tive jogo, sabes que não posso beber quando jogo, nem saí, assim não anima sair… Sobre primo como podemos fazer?... Vais ver, né? Ok, me liga!
Eu mesma na Rua D’Arte:
- Sabes, as pessoas estão estranhas…
- Achas, não acho.
- Sim, o que dizem não faz muito sentido pah… e a malta abraça-se muito, muito beijo… essa malta que nem conheço bem… está estranha esta night.
- Joana, não está estranha nada, sabes o que é estranho? É essa garrafa de água que tens na mão!
Sair sem beber? Nada, nem val’apena!
Às vezes parece-me que night africana… é assim, simplesmente. Não sei porquê. Porque vejamos, qualquer que seja o ambiente um copo já nos anima; se a música é má bebe-se mais um; e pedimos o terceiro se o ambiente está off; é bom beber um quarto se estamos cansados; um quinto se há sono; e ao sexto copo os homens parecem sem dúvida mais atraentes; as conversas mais interessantes; o céu mais bonito; o clima mais doce. A partir daqui estamos djezz e já não importa, mesmo que seja a única na pista e o DJ toque apenas os temas que servem para mandar as pessoas para casa; mesmo que seja mais hora de matabixo que de shots de tequilla; mesmo que no céu brilhe o sol, os olhos peçam óculos de sol e a maquilhagem já derreta com o calor - no importa, a hora deixa de existir.
Ou é hora de deixar de existir? Não importa, divertimo-nos! Não é?
As chamadas continuam:
- Ya, neguinho como é? Alguma coisa? Nada? eh pah… não sei né… espera prima está-me ligar – prima… apareceu? Ah, não… sim… eu estou a fazer alguns telefonemas, mas tudo está bem eu tenho certeza… talvez isso, bebeu um pouco de mais… pois… vamos ver né… manter a calma… sim… ok. – neguinho eu acho que vou à polícia, começar a ligar hospitais… eu sei lá… são 14 horas! Ele saiu de casa 15 horas de 6ª!
Não sei o que nos faz encharcar os fins-de-semana e tentar fintar a babalaze colando uma bebedeira à outra… mas a verdade é que na night de maputo… bebe-se! E olha à volta, quem é que está mesmo AQUI? Quem conversa mesmo contigo; quem escuta mesmo o que dizes; quem troca ideias? Quem conversa, de facto? Quem te olha nos olhos sem fugir com o canto do olho para quem entra, quem senta, quem abraça, quem acena. Mesmo tu, na night consegues focar-te em algum objectivo simples? Eu não.
O telefone dele toca:
- Sim, prima… eu estou agora a ir nos… ah, apareceu?... que bom! muito bem-disposto? He! He! He! He! Sim… mas prima… não zanga, relevaaaaaAAAAA!
*djezz – tem origem na expressão jazz; com djezura; grosso; tocado pelo álcool; embriagado; bêbado.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A minha sogra é feiticeira


Sim, eu sei que parece citação daquele filme não muito bom, mas na verdade a estória é assim, também não é muito boa.
Começo “pela cena da morte”, como se diz por aqui: uma portuguesa que casa com um moçambicano, o casamento revela-se problemático, ela acusa a sogra (não é a mãe de sangue do marido mas, graças aos contágios e convivências da família alargada africana, é, para todos os efeitos, a sogra dela) de ser feiticeira.
Sim, eu sei que é estranho, e para contar a estória nem sei bem por onde começar… ora bem… para facilitar as coisas refiro-me daqui em diante à personagem como “menina tuga”.
Menina tuga vem da tuga com namorado moçambicano que conheceu lá, e queixa que ele aqui age diferente: que gosta de sair; que aprecia dama que passa; que bebe; que desaparece na 6ª e regressa no domingo; que viaja com bradas; que apronta! Ela tenta controlar! Sim, ela tenta. Que ele discute; que ele lhe bate… que família é consultada para tudo; que marido passa o tempo lá, na casa da “mãe”; que essa mãe não é mãe, é tia! Que não sabe porque chama mãe!
Ela que não entende. Que avó de menina sua filha quer cuidar dela, quer levar para o brai na matola, quer deixar a brincar com os meninos do vizinho - com os negros, com os mulatos, com os canecos, com os monhés. Que menina não pode sentar assim - no chão; comer assim - com a mão; roer manga verde e beber água de coco directamente de dentro da casca! Que não pode andar sem roupa; pisar descalça a terra e comer a areia vermelha. Que aqui se come “à preto”; se houve música “de preto”; que “os pretos” não aprendem, não entendem, não… são como ela.
Ela, “a menina tuga”, aprende a fazer caril de amendoim para o damo, lava a roupa do damo, pinta a casa onde vive com damo, baba-lhe bem! Ela só lhe quer a ele, ele zanga. Ela não entende!
Ela desiste, chora noivado e cancela casamento; devolve vestido e desmarca copo d’ água - regressa para a tuga. Mas mesmo lá não entende… e então ela vai a um… desses que lêm as sortes. Um dos que corrige defeito e cura desgosto, dá fogo a quem não tem e diminui os que ardem demais. Um adivinho do Congo – ele diagnostica: “mãe dele é feiticeira!”. Ela regressa a maputo e consulta adivinho nacional, ele confirma: “sim, é feiticeira”. Afirmam e confirmam, como pode ser mentira? Ela diz à família, ela informa, como quem denuncia vício ou crime. A família… reage.
Menina tuga não entende, mas a mim faz-me no fundo sorrir. Repito que África é lugar de calores, de humidades, de energias… e de… feitiços, sim. Assim crêem os que nascem nesta terra; isto criticam os que, nascidos aqui, se dizem desenvolvidos, formados, viajados (mas que muitas vezes vão ao curandeiro na mesma mas o escondem gerando as inevitáveis esquizofrenias sociais); isto condenavam os colonos e os (ainda resistentes) neo-colonialistas e, os restantes… arrisco-me a dizer que, disto, desconfiam… e alguns não dizem que não, não dizem que sim, mas… respeitam as fés, as tradições, os hábitos locais.
Sim, há as estórias das pessoas que são “engarrafadas”; homem pela mulher para lhe ser fiel; casado pela amante casa 2, para que passe a casa 1; rapaz pela mãe para que não se case; menina pela avó para…
- Eu agora quero ter bebé. Mas não consigo fazer barriga pah… só posso ir perguntar minha avó, quem sabe me engarrafou!
- ??
- Sim! Uma minha amiga a avó dela lhe pôs a primeira menstruação numa garrafinha e enterrou num place, ela não engravidava, a cota não gostava de homem dela! Quando avó decidiu foi lá, desenterrou garrafa, abriu, minha amiga engravidou!
Há estes feitiços de dependência e os ataques de criminosa vingança:
- Sabes que a mãe dela foi morta?
- Morta? Como assim?
- Ela é jovem, como morreu assim?! Ela estava de férias em Zavala, lá fazem essas coisas! Acho que se envolveu com homem errado ela, coitada…
- Mas… não entendo.
- Dizem que morreu com ataque cardíaco? C’mon! Pedimos autópsia, encontraram aquela cena, eu tinha a certeza!
- Que cena?
- Cérebro de crocodilo, não conheces?
- Não…
- Cérebro de crocodilo esmagado até ficar em pó, é veneno aquilo! Tu pões na bebida ou na comida, não tem cheiro nem sabor, tu morres! Parece ataque cardíaco, NA-da! Foi assassinada! Mulheres de lá fazem muito isso! Nem vale a pena ires lá, basta ser de fora de Zavala que elas ficam de olho, imagina tu, estrangeira, pior mulunga! Nada, se vais lá não aceites comida nem bebida! Mesmo em Inhambane, é terra de feiticeiros ali, eu mesmo quando era criança mãe sempre me dizia para não aceitar nada! Nem doce!
Sim, há muitas coisa… há os curandeiros, os nhamussoro, os adivinhos, os médicos tradicionias… os que são escolhidos pelas águas, os que comunicam com os antepassados, os que lêem nos ossos as sortes, os que sabem das ervas, os que prescrevem rezas, banhos e danças…
E para mim… enfim, tudo se baralha um pouco, mas feiticeiro parece que não é coisa boa…
Eu estou em casa da minha família africana e passa em rodapé na televisão: “família mata parente por suspeita de feitiçaria”. Eu engulo em seco… pois, não é coisa boa, e talvez menina tuga nem saiba o que significa AQUI, isso que ela repete por aí.
Sim eu acredito que há pessoas, adivinhos ou não, que conseguem ver, sim, ver coisas. E ver não só o que nós somos mas o que nós desejamos… porque a energia existe, e manifesta-se em tudo, de muitas maneiras, responde aos nossos medos e também aos desejos. Sim, acredito, e respeito até, mas… acho que não, acho que o que o adivinho do Congo (das terras longínquas e por isso sempre mais exóticas); e o adivinho daqui (mesmo que seja acabado de chegar de Nampula, e o publicite como espécie de garantia de que a recarga energética é bem feita lá no mato, longe das más energias dos fumos e das máquinas das cidades) ambos confirmam não é verdade. Eu acho que se enganam. Porque no final a questão é que… esta… é também a minha sogra! Não é mesmo sogra, mas repito que as práticas de família alargada africana têm destas coisas, e para todos os efeitos mãe do meu ex-namorado é minha mãe, é minha família, é minha sogra. E uma coisa é a menina chamar feiticeira a sua sogra, agora à minha?! NÃO GOSTEI!

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A culpa foi do canhú


Batem à porta, ele tem um sorriso nos lábios e uma garrafa com um líquido espesso e amarelado na mão:
- Olá! Trouxe canhú para ti.
- ? É o quê?
- Não conheces? Prova, este é doce, é sumo, podes beber à vontade! Mas acaba! Não deixes nada na garrafa!
- Porquê?
- Isso fermenta e fica… perigoso!
- Mas porquê?... quero provar, vou deixar fermentar um pouco.
- Ysh!... ok… tu que sabes…
É 4ª feira e eu vou para o CFM:
- Foi eleita a mais bonita de África – Esta estação conheço-a mais pelas noites longas no bar kampfumo bistro que pelos caminhos-de-ferro, mas garantiram-me que funcionam, que os comboios saem mesmo daqui. Linhas para Marracuene, para Chokwe, para Boane.
Eu avanço para experimentar, entro num comboio feitos de bancos de pau:
- Vestida de capulana! Uau! Que nice, vais ao festival das capulanas mesmo!
Sim, capulana também é coisa desdenhada pela classe média maputense, mas tão apreciada pelos mais tradicionais e pelos mais… artísticos, obviamente homenageada pelos mais… estrangeiros. Como eu.
A viagem para Marracuene custa 5 meticais. As carruagens estão meio destruídas, os bancos são de pau, mas o comboio é bonito… eu gosto de comboios. Sim, hoje pus capulana e vou a Marracuene, ao Gwazamuthini, ao festival da Marrabenta, à festa do canhú. A viagem de comboio é mahala, está por conta do festival da ruidosa “arrebenta!”- música tradicional do sul de Moçambique.
A época do canhú é especial e preciosa, envolta em estórias, mitos e mistérios. É merecedora de cerimónias de exaltação dos antepassados; de preces dos fazedores de chuva; de homenagens à fertilidade da terra, das mulheres e dos homens; de pedidos de bênção de comida. Todos os anos, em vários pontos das províncias de Maputo e Gaza – e um pouco em Inhambane – as pessoas deslocam-se para perto da árvore do canhú, para perto das mulheres que dos seus frutos tiram os sumos… míticos.
O evento é dirigido por régulo e dura até ao anoitecer, envolve representantes do Conselho Municipal e do Governo da Provincial, gera emoções e reconhecimentos, promessas de antepassados e respostas a pedidos – os povos pedem chuva.
E em Marracuene tudo se mistura. Eu estou no comboio que segue para lá, aproximadamente 30 km a Norte de Maputo. Lá o canhú mistura-se com as celebrações de Gwazamuthini, para alguns tudo se resume a uma bebedeira de ukanyi, mas as primeiras horas a cerimónia é de evocação e exaltação dos espíritos dos guerreiros, com o tradicional “kupalha”. A festa prolonga-se por todo o dia 3 de Fevereiro, o feriado dos Heróis Nacionais.
No caminho fala-se canhú. Esse é o tema: o mais fresco, o mais puro, o mais tradicional, o mais fermentado… Provamos com paladar gourmet e partilhamos com amor fraternal. É líquido precioso, disso não há dúvida.
O comboio chega, da estação vê-se o recinto cheio de gente:
- Vamos! Hoje é noite de amor livre!
Aqui compra-se a bebida que tradicionalmente não se pode vender, bebe-se o líquido que criança não pode ver.
E nestes dias, nos dias do festival do canhú, não importam os compromissos, os casamentos ou os noivados, aqui vale tudo, debaixo da lua e das estrelas, tudo vale.
Dança-se e fazem-se as cerimónias das chuvas. Homenageiam-se guerreiros, as vitórias sobre os colonos, celebram-se os feitos heróicos dos moçambicanos e partilha-se a carne sagrada.
Tradicionalmente um hipopótamo é caçado nas águas do rio Incomati e a sua carne é comida por todos. Mas nos últimos anos do rio já não avança o animal que, dizem os mais velhos, “se entregava em sacrifico, sem luta”, não sabemos porquê mas “as águas do rio recebem muita água salgada”, dizem uns; “as tradições não são respeitadas e os espíritos não estão contentes” dizem outros. Não, eu não vejo hipopótamos. Numa das esplanadas montadas à minha frente uma cabeça de vaca fumega na grelha.
Por todo o lado garrafas de canhú, e continua a discutir-se a sua pureza, o seu grau de fermentação. O sumo é feito do espremer do fruto do canhoeiro, ou árvore de marula, como é conhecido na África do sul. Garantem que sumo é sumo, não tem álcool, mas também se sabe das bebedeiras que apanham os macacos e os elefantes – grandes apreciadores deste fruto.
Porque o álcool é feito… pelo tempo, pelo calor:

- Bebe! Basta deixar aí o sumo no copo e logo fermenta… e alcooliza.

Eu estou sentada, bebo, e já não me apetece levantar daqui…

- Eh! Eh! Olha para ela, olha o canhú a fazer efeito!

- Mas… eu estou a beber sumo!
- Mas ele fermenta, mesmo no teu estômago fermenta.
- Nem sinto as pernas…
- Pois!
- Apetece só ficar, dormir…
- Tá a ver?! Ah! Ah! Canhú não falha! E cuidado que vem aí outros efeitos!
- Que efeitos?
- Ela não sabe? Vai saber!

O canhú é tradicionalmente feito pelas mulheres. Mas aqui, “nas comunidades” elas não o bebem junto dos homens:

- Nas festas de canhú as casas de banho dos homens e das mulheres têm que ser separadas, bem bem! Senão nunca vagam! Ah! Ah! Ah!

Tradicionalmente é bebida de relações delicadas: aproxima sogra e genro - é ela que prepara e lhe oferece a primeira garrafa; aproxima mãe e filha - no dia seguinte à festa elas partilham as misteriosas intimidades dessa noite.

- Sei uma estória de uma violação em plena cerimónia de canhú, mas nem se considera crime! É caso que nem vai a tribunal isso aí!
- Os rituais de canhú são exaltados por cenas de adultério que nunca serão julgadas por ninguém, por motivos aparentemente óbvios.
- A esposa do Régulo trata o canhú com muito carinho, mas sabe como a bebida o vai conduzir para os caminhos da infracção do código conjugal.

- Mas todo o mundo releva, pessoas não têm culpa, basta apenas se for apanhado dizer: “mas amor, a culpa foi do canhú!”
- Pois bem, este meu desejo de provar esta bebida está a tornar-se uma obsessão e posso jurar XICUEMBO XANHACA que não é por alegadamente ser um poderoso afrodisíaco capaz de envergonhar o Viagra!
Eu regresso de Marracuene, entro na cozinha e ainda está a garrafa de canhú que esqueci na prateleira:
- Olha, ainda temos… - PUM! A rolha salta como numa garrafa de champanhe!
- Eh pah, é mulunga mesmo, eu disse-te, bomba explodiu! É perigosooooooooooooo… anda cá!
Porque o canhú… é afrodisíaco.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Lá, onde se deixa o coração


Ensinaram-me aqui que o tempo não existe. O tempo pertence ao sol e à lua, nós que vivemos na terra que sabemos do tempo?
Estou deitada na esteira e vejo apenas a lua grande, no céu. Sinto a luz da fogueira que ainda arde, daqui a nada acaba, e aí somos, eu e tu, apenas. E o encontro é feito assim mesmo, debaixo desta lua cheia; com o som do vento nas folhas do coqueiro, e com o cheiro salgado do mar misturado com o odor enjoativo da xima que coze.
Estou na Catembe, na outra margem, e bebo vinho tinto misturado com coca-cola. Sim, de inicio eu também estranhei:
- Mas, que ideia é essa de vinho com coca?
- Sim, nós bebemos, chamamos catembe, em Angola também bebem!
- Sim mas… porquê?
- Mas amiga, tu bebes o vinho puro? Fica muito forte!
- Vocês pa, toda a gente bebe puro, só mesmo vocês é que misturam com alguma coisa!
Mas depois, olhando melhor o pacote (!) de vinho em cima do colmer…
- Bom, pensando bem, dá lá uma coca.
Sim, já disse muitas vezes que aqui me ensinaram sobre o tempo… ou será que foi aqui que aprendi? Porque África não se explica, não se ensina, sente-se.
Daqui vejo as luzes da cidade, Catembe é uma península mesmo em frente a Maputo, o caminho até cá, por terra, é longo e esburacado, fazemos a viagem de barco. Todos aguardamos a prometida ponte que irá atravessar este Índico aqui, onde se mistura com o rio Matola. Uma ponte que transformará esta margem em lugar cobiçado, agitado, vivido. Mas por agora é assim, calmo. Estamos perto da cidade mas aqui há menos luz, o céu encanta-me mais, a água é mais clara e a areia mais limpa. Aqui dá para caminhar de pé descalço sem ter medo de pisar os vidros, as caricas, o lixo que invade a praia do outro lado e que a ninguém parece preocupar. Aqui dá para nadar sem ficar preso no matope pastoso, sem receber em cada braçada os cheiros que o escoamento desorganizado das águas faz do lado de lá da baía. Aqui ainda se sente uma praia, um céu. Eu gosto de vir aqui, a viagem é desorganizada nos pequenos barcos ou no grande, demorado e dispendioso ferry… sim, vir à Catembe é um processo, mas eu gosto de vir aqui.
Depois, deste lado, não há nada: há as barracas das cervejas e do frango no churrasco; há o mato esparso; a estrada de terra batida; há as casas à beira da água entregues ao abandono dos quintais sujos, das paredes secas, das janelas partidas, dos telhados incompletos, das torneiras sem água, dos tectos sem luz… Um dia cheguei a pensar viver aqui, e os meus amigos riram:
- Na Catembe?! Ah, é branca mesmo esta! Não se vive lá, não tem nada! Não tem mercado, não tem restaurante, não tem discoteca, não tem djobs lá! Vais fazer o quê? Mas vão fazer ponte, os chineses vão fazer, depois vamos todos, reserva agora terreno e faz lá quintal com brai, havemos de vir te visitar todo final de semana.
Sim, não tem nada aqui. Mas nós não precisamos de nada, isso eu sei.
Olho a água, num barco está pintado BAGAMOYO.
- Sabes que há muitos lugares que se chamam assim, em África?
- Ai é? E são assim como a nossa rua de bagamoyo?
- Ah! Ah! Ah! Não. Sabes que significa?
- Nada, não sei.
- Lá, onde se deixa o coração.
- Sério? Ya… mas mesmo aqui na nossa bagamoyo muito coração fica! Pensas que não? Essa zona da baixa eeehe! Ali mesmo na rua Araújo muito homem se apaixona. Strip-club é romântico pa! Tem damas doces! Tenho amigo de meu brada que se apaixonou por uma dessas prostitutas de sainha que fica ali na esquina. Ysh, coitado pa…
- Apaixonou?
- Ya, tava mal ele mesmo, depois era já um jonh cota, né?
- Mas sofreu de amores mesmo, mesmo?
- Ei, sofria! Mesmo, vinha ver-lhe to-dos os dias, lhe apanhava de manhã, dava boleias a todas bradas, as outras trabalhadoras do sexo, né? Ya.. via-se que sofria ele.
- Sério?
- Tás a duvidar? Era um assim da tua cor, ele, vocês como sofrem com essas coisas de amores pa!
- Ya…
Eu lembro-me da Tanzânia, para mim o país dos primeiros amores africanos, foi lá que me contaram que os escravos ficavam presos em Bagamoyo, de noite eram transportados de barco para os mercados de escravos de zanzibar, e… chamavam assim à cidade-porto, “bwaga-moyo”, coração ficava ali, porque nunca mais viam a sua terra…
- Essa estória contaram-me lá, na Tanzânia, aqui sabes porque se chama bagamoyo?
- Nada, eu não sei essas coisas de nomes, nem conheço Tanzânia, eu sou daqui, nasci na Mafalala eu!
Eu também não sei, eu não nasci aqui… mas gosto de me perder nas estórias dos lugares, nas razões dos povos.
Contaram-me no Quénia, a propósito de uma zona onde há muitas localidades com o mesmo nome, que os governos, nas suas tentativas de sedentarização das tribos, fomentaram as placas que assinalam as localidades, contaram que as tribos - chegado o momento das chuvas ou das secas, o momento de mudar de lugar - avançavam… levando consigo as placas com o nome, colocando-as nesse outro lugar para onde iam viver. Sim, faz sentido, onde eu vivo chama-se assim, não importa onde é, importa que eu estou aqui.
E na verdade o mal de África é assim, é mal de amor que não se cura mudando de lugar.
Olho o céu. Chovinha. Sim, em moçambique não borraça, chovinha.
Amanheceu já e nós queremos apanhar o batelão de regresso, mas só daqui a uma hora… esperamos.
Sim, aqui aprendi sobre o tempo, de como ele corre, se quiseres; e se suspende quieto, se desejares. O tempo é teu, de nada vale nervosar os dias a tentar viver o tempo exterior a ti. Mesmo eu, que escrevo, finto o tempo, apanhando as memórias do que já passou, do que se perdeu; e viajo, avançando-o nos desejos do futuro…
O ferry chega, tem o mesmo nome, Bagamoyo.
Sim, o presente é hoje, e mesmo nos meus planos de viagem eu acho que é aqui mesmo, é aqui que me fica o coração.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Afecto africano


Estou com amigos em Maputo, num bar da feira popular eles dançam:
- Nice, os teus amigos estão maningue apaixonados!
- Ya… maningue mesmo.
- Namorados?
- Bom… eles estão noivos.
- Ai é? Para quando o casório?
- Hum… ela acho que anelamento foi agora, casa em Outubro.
- Ela?
- Sim. Ah, ya… não estão noivos um do outro…
Claro que é um disparate. É um disparate eu dizer que aqui os afectos são diferentes. Que aqui, em África, há os calores, claro; as temperaturas, com certeza; o ferro da terra; as humidades do ar; as doçuras das frutas; as frescuras dos cocos. Claro há isso tudo aqui. Depois há os mistérios dos desejos, a comunicação tão directa das carnes. Há o magma da terra, a forte energia de Gaia, a inegável fertilidade do vele Rift e o poder fecundador da chuva, sim…
Não sei. Mas a verdade é que aqui, mais do que em qualquer outra parte do mundo que conheço, os afectos e a intimidade se diluem nas relações de fachada.
Acumulam-se invariavelmente em cada homem a primeira, a segunda… a terceira “casa”, em abençoado islamismo ou antropológico tradicionalismo. Na maioria das vezes hipocritamente escondidas por detrás do aparente, e importado, monogamismo.
Mas claro, é disparate. É disparate dizer que aqui é diferente.
Conversamos na esplanada:
- Joana, tens de entender, alegria de Moçambicano ta na cama mesmo.
- Não sei se é essa a questão.
- Sério, pode ter fome, pobreza e nudez em casa, mas sexo não falta.
- Sim, mas não é disso que falo…
- Olha, eu sou moçambicano e cresci nas zonas rurais, vim para a town, enfim por destino, procurando progresso profissional, mas aqui e no mato, o africano, no geral, pode até zangar-se com a mulher durante o dia, não lhe falar e por aí fora, mas chegado na cama, esquece-se as diferenças.
- Ah! Ah! Ah! Sim, mas isso até pode ser bom, né? Não é disso que falo, falo da hipocrisia que anda à volta disso.
- Sim, mas joana, a mentira que se usa… enfim, é de tipos que pensam que falando a verdade pode não dar certo com “casa dois”… é por aí, percebes? Entende-se. Então daí andam mentindo a ver se mantém as duas partes… e isto não é só os homens, as mulheres também.
- Sim, mas é hipocrisia.
- Naturalmente.
- E isso não é nice.
- Lógico. É por isso que para mim a vida é um teatro sem ensaio, planifico o básico – cumpro meu papel - o resto curto à minha maneira.
- Ya, mas eu não gramo disso.
- Como assim? Gostas do "DIRECTO ao ASSUNTO"?
- Claro! Gosto de ser eu e assumir isso em tudo o que faço!

- Ya, nós levamos muito tempo a nos enganar uns aos outros enquanto podíamos poupar muito o time e maximizar os momentos.

- Exacto.

- Ya, tu tens razão, mas não te vais dar bem aqui, sabes?... Não vais não, és muito demasiado ocidental, sabes?

Claro que me farto de escrever que as generalizações são criminosas, e as que eu aqui faço não são menos. Claro que o que é fascinante, em África e no mundo, é a diversidade de culturas que existem, a oposição dos seus hábitos, o contraste das suas tradições, mas que aqui isto que sinto é uma constante, sim, é.
No restaurante:
- Eu estou a perguntar se tu tens alguém. Sim, porque eu estou a dizer directo, eu sou-te fiel, eu não tenho uma segunda pessoa!
- Mas, tu és casado!
- Sim, ya mas… é pá! Porque és confusa!? Tu estás a entender! Eu não tenho uma terceira pessoa!
Mas talvez não sejam mesmo os afectos que são diferentes… talvez seja eu que… os veja com outros olhos.
Os afectos mudam, ou somos nós que mudamos?
Sim, porque moçambicano não dá carinho.
Moçambicano não beija na rua. Não abraça de repente o pescoço, de surpresa… não, tu não és assim.
Telefonas, e é no quase formalismo do “apenas para ouvir a tua voz” que se manifesta o teu… interesse por mim. Mas o amor, aquele que dá frio na barriga, aquele que faz sofrer com as ausências e nos faz tocar, e olhar, e viajar, esse não o sentes. Não é culpa tua que não seja assim. Nem sei eu se não são coisas que estou para aqui a romantizar. Coisas que não existem, que existiram na naifte do passado. Não sei se é a vida que já não me deixa ver assim as pessoas, se é aquilo a que chamam “diferença cultural” que não nos aproxima assim. Mas não, não sinto.
Viajas e esqueces-me. Simplesmente assim. Sem palavras, sem mensagens, sem bips ou pleasecallme.
Os afectos aqui são diferentes… não preciso que mo digam. Sim, revelam-se nas atenções do que… socialmente se vê. Do estilo, tu levares-me a conhecer os teus amigos é coisa afectuosa, é assumir de desejos e compromissos, e tocares minha mão na rua é dizer ao mundo que estás disposto a aceitar-me, a mim, a estrangeira.
Sim… mas não é disso que falo. Falo do colo suave, do carinho simples nos cabelos, do olhar que se prende por um momento no meu. Da mão que num abraço apoia a minha nuca…
Mas disso não há, desse amor revelado e surpreendido nas coisas mais inesperadas, desse não se faz.
Escrevo sobre Maputo, e é a cidade que me fala. São as ruas de alcatrão gasto que sussurram, as acácias que cantam, a marginal molhada que segreda… e são os contentores que espalham os cheiros que guardam os segredos e… não falam.
Reclamo que tu moçambicano não falas, não mimas, não apaixonas – por muito que a palavra te saia facilmente da boca - não sentes…
Mas agora… o verão aquece os corpos e a efemeridade do tempo mostra-se. As mangas na cozinha apodrecem e o queimar do incenso na minha casa mistura-se com a humidade do ar. O quarto está cinzento. E eu sinto-me assim.
Voltam as febres… das gripes de verão, das insolações, das malárias, dos feitiços…
Eu, como fazem os cães quando estão doentes, deito-me e descanso, não como, não bebo. Vejo pela janela os pingos desorganizados das chuvas de Janeiro. Ao lado da esteira um bule com chá de ervas que me trouxe a empregada, e um copo. Estou enjoada.
A verdade é que te sinto a falta. A verdade é que agora, a esta hora do anoitecer em que as cores ficam mais vermelhas e a lua luta por protagonismo com o sol, agora penso apenas no teu beijo. Africano.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Eles


Eu não entendo as generalizações. Claro que me dirão que são compreensíveis, até necessárias na comunicação mas… são perigosas. O risco de tomar a parte pelo todo é muito grande e se nos habituamos a essa… simplificação da comunicação a vida nas suas únicas e maravilhosas nuances passa-nos ao lado…
Estou de viagem:
- Bom, lá vamos nós enfrentar a fronteira. Estes gajos aqui pá… vamos passar mal com eles!
- Não sei… falas dos sul-africanos? Eu tenho boas experiências com sul-africanos…
- Mas buers?
- Sim, tenho boas e menos boas. Com buers, com zulus, com pessoas de origem italiana, portuguesa…
- Esses pior! Sabes que eles como foram forçados a mudar-se para a África do Sul ainda são piores porque tem raivas contra nós.
- Nós? Não sei… eu tenho amigos sul-africanos de origem portuguesa…
- Porreiros?
- Maningue.
- Ya, tu estás cafreal! Já falas mesmo como eles. Sabes o que é cafreal? É aquela galinha que eles fazem por aqui.
- Aqui?
- Em Moçambique.
- Eles?
- Ya.
Eu sorrio um sorriso amarelo… E por esta altura já estou um pouco curiosa… eles? quem são “eles”?
Apetece perguntar… mas corro o risco de me faltar diplomacia… fico em silêncio e observo.
Estamos onde eu gosto de estar, bem no meio do mato:
- Pessoas aqui têm medo de corujas, e quando as encontram matam-nas, claro que eu não, eu sou um ranger, entendo as coisas da natureza, mas as pessoas da minha tribo têm medo. Acham que as corujas porque vivem de noite, e voltam assim a cabeça, quase 180 graus, estão a ver? As pessoas têm medo. E é o medo que nos faz matar. Eu não mato, sei lá se não é meu ndzuti.
- Ndzuti?
- Sim. Acreditamos que o ndzuti é como… uma sombra, um espírito com características humanas, depois da morte de alguém o espírito mantém contacto connosco, e pode estar aí, nesses animais nocturnos. Eu não tenho medo. Faço as minhas oferendas, as minhas homenagens, boas comidas, vinhos, meus antepassados estão em paz.
- Fazem oferendas? Como paxar?
- Oferecemos bebida e comida ao nosso antepassado. Como tu.
- Como eu?
- Sim, pelo menos os portugueses fazem.
- Fazem?
- Fazem isso de, por exemplo cozinhar a comida preferida da avó que morreu e pôr na mesa, num prato. Ninguém come, é para ela. Ou na mesa onde o chefe da família se sentava pôr no lugar dele um copo de vinho…
- De vinho novo. Daquele amargo, com duas colheres de açúcar amarelo.
- Vês? Como tu, tu fazes isso!
- Eu não faço, mas estava a pensar no meu avô, ele gostava de vinho assim.
- Mas pergunta a eles, aos portugueses. Porque eles fazem.
Eu penso na casa dos meus avós, no lugar onde meu avô se sentava, na gaveta onde havia pedaços de pão caseiro e bacalhau assado na brasa. E pergunto-me se alguém lá em casa fazia isso, se eles faziam. E pergunto-me de novo quem são eles. Os “eles” que o Michael conhece fazem isso.
Michael é um experiente ranger de uma reserva privada, e aqui, nas reservas que são privadas, pisa-se o capim, assobia-se para chamar a atenção dos animais e avança-se com o jipe acompanhando duas irmãs leoas, que segundo ele:
- Procuram algo para comer.
Acompanhamos de jipe aberto, nenhum dos rangers está armado. As leoas não querem saber de nós. Não é perigoso, “eles devem saber o que estão a fazer”, penso eu.
Claro que me entusiasma esta proximidade e recebo o meu “momento national geografic” – uma perseguição - uma caçada – uma presa na boca de um predador.
- Um snack – diz Michael – ela nem vai partilhar com a irmã, it is not enought to share.
Eu já tinha estado perto de animais selvagens, muito perto mesmo, mas sempre na sensação de que por acaso, ou por vontade do animal, os nosso caminhos se encontram, aqui não é assim, o desporto é mais radical e avançamos até quase os tocarmos. Eles não se importam. Estamos parados tão perto que podemos ouvir os ossos da cria de worthdog desfeitos pelos dentes afiados da leoa.
Parece tudo tão natural, nós conversamos:
- Casado? Com filhos?
- Sim, casado, com dois filhos.
- Uma mulher?
- Bom… sim, eu tenho uma mulher mas estou aberto para uma segunda e uma terceira.
- Ah! Ah! Ah!
- Sim, eu sou africano e tenho muito orgulho da minha cultura.
- Claro, claro…
- He! He! Não, estou a brincar, nós, graças aos casamentos mistos – entre pessoas de tribos diferentes - já não conseguimos manter isso. Pois é, estamos a perder as nossas tradições por nos misturarmos… eu tenho uma mulher e não posso ter mais nenhuma, ela não haveria de permitir, está a ver o que é isto? É uma violência! E uma pena… mas fazer o quê? Fiz minhas opções quando casei com ela… Eu sou africano, devia ser mais tradicionalista talvez, mas é o que dá quando casamos com uma de outra tribo. Porque eu sou Shangaan… Sabe o que significa Shangaan? O que perante a guerra deixa os seus filhos… não é bom nome, mas é minha tribo, fazer o quê? À noite contamos muitas vezes nossa estória, dizemos “Garingani, n’wana wa Garingani!”
- Sim, nós também dizemos isso! Karingana na karingana!
- Dizem, vês? É igual em Portugal!
- Não, nós, aqui em Moçambique, também fazemos!
- Mas tu és de onde?
- Eu?… bom…
- Disseste “nós”.
- Era para dizer “eles”?
- Os moçambicanos?
- Sim, quero dizer, nós, em Moçambique também fazemos isso, ou fazem…
- Isso das estórias? Ya, nós também, dizemos “eu sou o narrador, a filha – são as mulheres que mais fazem - do narrador” e todos repetem “Garingani”.
- Ya, nós… eles… aqui… ali… enfim também se faz isso.
- O que vês ali é um camaleão, sabes o que é?
São animais que mudam de cor. Nós aqui acreditamos que se lhe tocarmos nós também mudamos de cor, eu não gosto dessa ideia.
Eu não tenho medo de insectos, escorpiões ou cobras, mas de camaleões?! Ya, tenho medo! A minha filha lá em casa às vezes persegue-me com um para me assustar.
Que posso fazer? Acho que é essa coisa de mudar de cor que eu não entendo! Talvez por isso tenho medo deles.
De novo “eles”… falariam os meus amigos dos camaleões?