quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Juntos mas não misturados


Vivo em Moçambique e trago comigo não só aquilo que sou, todos trazemos em nós o que poderemos ser.
Vivo aqui e alimento os dias de olhar. O olhar meio fora, muito dentro, de uma estrangeira em maputo. Alongo sobre isso as tardes e a escrita. Deslumbro-me com as questões da comunicação, da identidade, da origem da influência, do contágio.
A cidade é de personalidade excêntrica, mutável, quase esquizofrénica. É exótica como uma bailarina, picante como caril, fresca como Laurentina preta, bruta como diamante, calórica como um saco de castanha, doce como matortor, superficial como extensões de cabelo da china, contestatária como um revolucionário, guerreira como um makonde, suave como óleo de coco, pobre como um caniço, húmida como o suor de Dezembro, quente como o sol que laranja o entardecer e colorida... Colorida como uma capulana.
Viajo para o estrangeiro com actores moçambicanos e os colegas portugueses olham-me, e fazem-no de início com um esboçar de sorriso ainda meio a medo, ainda com dúvida se serei mesmo eu… e quando na hora do mata-bicho me apanham sozinha, do fundo, lá bem do fundo vem a questão:
- Como é que tu te dás assim loira no meio desses pretos todos?
Como posso responder?
Falo-lhe das crianças que me rodeiam gritando “mulungo!” nas escolas de Marracuene? Ou da minha mãe Ju? Da família dos meus amigos que é minha família, com direito a mãe, irmão, casa africana?
Sou convidada para me juntar a um grande grupo que almoça no Zambi, todos com relação forte com Moçambique, portugueses nascidos cá, alguns moçambicanos nascidos e vividos aqui, filhos de portugueses de Quelimane, de Chokwe... Alguns de visita, em viagem, em turismo, outros à procura de oportunidades de trabalho… grupo diversificado, divertido, conversa amena. Contam das saudades dos cheiros, da memória das cores, do prazer no reencontrar dos sabores. Contam da vida naqueles tempos, e já não sei bem como, noto apenas que a narração é feita sempre na positiva:
- Esses tempos é que eram! - eu falo meio a brincar, claro, não quero provocar e muito menos ofender, mas sorrio e continuo:
- Sim, para os brancos eram bons tempos!
Porque para mim a questão do colonialismo passou já há muito dos livros para as ruas e aí o neo-colonialismo que se sente presente no discurso de tantos portugueses a viver em África para mim passa a nódoa, e não resisto a responder aos olhos espantados da minha interlocutora:
- Sim eram bons tempos para os colonos, ou acha que para os escravizados também?
Sim, eu estou de patriotismo ferido. Aqui resisto ao padrão de vida que fazia em Portugal. Sim, podem dizer que sou freak e que vivo na Bagdad de maputo mas na verdade vivo aqui, e por prazer.
É segunda-feira e uma amiga portuguesa que vive e trabalha cá há um ano e tem plano de ficar 10 desabafa ao almoço:
- Sabes, o meu patrão é muito difícil.
- Ya, às vezes o meu também!
- Sim, o meu é… moçambicano, sabes?
- Ya… e então?
- Pois, e sabes como eles são… – eu perco a apetite:
- Não, não sei, como é que “eles” são? Sabes que isso do “eles” não existe!
Os expatriados, estrangeiros e outros migrantes fazem facilmente guetos, vivem em comunidades fechadas. E sim, isto acontece por todo o mundo, é normal, é compreensível, é natural. Mas não é por isso que vou a correr cumprir uma expectativa e responder a um lugar-comum. Como explicar? Para mim é aborrecido rodear-me sempre das mesmas pessoas, com os mesmos hábitos, a mesma fé. Maputo é tão diversa! É estimulante para mim a diferença e sinto bem cá dentro que isso de ser portuguesa não é coisa que venha definida na certidão de nascimento mas também que se gostar de xima não me faz moçambicana também não é por recusar bacalhau que deixo de ser lusa.
Tenho todo o respeito pela diferença de opiniões, acho saudável e até me alimento disso, mas também penso. E com mais ou menos cabelo, seja ele loiro ou carapinha, todos temos esse… como dizer? Potencial.
Vou sair, na night mais elitista de maputo parece que as pessoas convivem alegremente mas na verdade a surpresa vem de onde menos se espera, um português jovem, em maputo em projectos de intercâmbio comenta:
- Sabes aqui o que falta são mulheres bonitas! – eu não quero acreditar que é comentário sobre um país de paisagem humano como a de Moçambique! E juro para mim própria que ouvi mal!
- Como? C’mon, look around! Há falta de mulheres bonitas aqui?
- Claro que sim! Bom, a não ser que gostes de pretas!
Hoje fui jantar a casa de uns amigos que conheço de Portugal. De há muito tempo, da infância acho. No jantar tinham todos a mesma origem, e a conversa animou, e a certa altura surgiu o que foi para mim o slogan da noite:
- Eu costumo dizer que estamos juntos, mas não estamos misturados!
Falávamos da comunicação com as pessoas e do slogan que é usado nas despedidas e nos cumprimentos, no vulgar “estamos juntos”. Eu a falar do que significa… mas depois desta frase… bom, deixa lá o que significa! Não faz sentido explicar Moçambique, África não se explica, sente-se.
Vamos sair e no CFM a malta está junta, mas não misturada, na Rua d’ Arte a malta está junta, e até falo do sítio como um mixed placed… mas misturas? Todos as temos no sangue, mas parece que alguns aqui o ignoram.
E como a inspiração vem de todo o lado e as ideias andam por aí - de tal modo a voar que algumas são apanhadas para a vida das publicidades - então proponho esta a alguma das redes de telefonias móveis – a qualquer uma que eu cá não tomo partidos - este slogan pode vir com um “pacote empresas”, ou ser oferta com o tal DIRE de 1000 dólares:
“Telefonia móvel de Moçambique, para nós que estamos juntos, mas não estamos misturados!”

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Minuto africano


Hoje, dia 1 de Setembro de 2010 é lançado oficialmente o álbum de Afonso Dlhakama “o paish vai ardher”.
Eu abro uma lata de grão que tenho na dispensa, depois de viver em África há mais de três anos já esqueço a regra: ter sempre em casa comida para sobreviver um mês. Quando vivemos por algum tempo num país temos tendência para pensar que dominamos as coisas e dificilmente somos surpreendidos pelos acontecimentos, mas não é assim. Hoje não.
A empregada liga-me bem cedo:
- Senhora? Eu estou na portagem mas.. chapas estão voltar, senhora tem muito barulho eu… não consigo… nada… mas hei-de vire… - a chamada cai. Problema com transportes e comunicações neste país não é novidade, saio para a rua. Smssa um amigo que tenha cuidado com as rotas, “há confusão”, talvez seja do sono, mas eu não levo a coisa muito a sério.
É quarta-feira e eu vou trabalhar, no rés-do-chão o guarda abre a porta:
- Senhora está a ir aonde?
- Ao serviço.
- Ysh, senhora não vai! Hoje polícias estão a disparar, não ouviu? Volta, senhora.
Subo as escadas. Telefono para uma colega, confirma que “nem vale a pena!”
Toca o telefone:
- Duas crianças morreram com disparos da polícia, uma com uma bala no peito, outra na cabeça. Crianças da avenida de Moçambique!
Eu abro o computador.
Toca o celular:
- Joanna my dear you should stay inside today, the all city is crazy, fire everywhere, police! And most places are closed!
Eu acabo de mudar de casa, na rua onde vivia ainda ontem ouvem-se disparos de metralhadora.
Na marginal e na Coop foram começados vários incêndios e duas pessoas já morreram.
Ouvi muitas vezes na viagem que em África tudo muda num instante, que somos sempre estrangeiros e denunciados à primeira vista pela cor da pele, que em situações de conflitos a precipitação é comum, é fácil e até compreensível, que possamos ser alvo de actos precipitados. Aprendi durante a viagem que em África nos devemos afastar das zonas de tumultos, até de ajuntamentos. Manter-nos longe da polícia e esperar. Esperar que tudo acalme. Apenas isso.
É disparate temer a morte em momentos como este, todos sabemos que não se morre em situações perigosas - morre-se. Apenas. A menina que levou a bala na cabeça arriscou-se apenas a regressar da escola…
Às 15 horas sms de amiga Finlandesa:
- Friends of Zego killed at Chamanculo. Oh, Maputo!
As embaixadas avisam que é reacção à subida de preços de pão e chapa, aconselham a ficar em casa e esperar. As embaixadas?
Dizem-me que a uma francesa residente em maputo a embaixada já ligou duas vezes, a mim ninguém da diplomacia me ligou. Mas a mãe do melhor amigo em Maputo telefona, conta das notícias, pergunta das comidas, desaconselha das saídas.
A certa altura todo o bater de porta parece tiro e os risos das crianças na varanda soam a gritos.
Amigo que vive numa das zonas melhores da cidade manda sms:
- Smoke is gone, mas ainda há barricadas, está mais calmo mas à noite pode piorar, Mundo’s tá aberto.
Ainda ontem quando comprei pão pensei nisso, lembro-me que aconteceu coisa semelhante há dois anos e sabemos que sim, tudo pode mudar. Agora estou a arrumar a casa nova, mas na verdade não sei quando tudo ficará fora de sítio.
Está muito calor, pouca humidade no ar. Olho pela janela e vejo os guardas sentados na sombra das mangueiras, dos coqueiros, algumas pessoas passam a pé, sorriem, conversam.
É fácil adormecer numa tarde assim.
Ao longe ouvem-se sirenes, alguns disparos, ainda se vê fumo… dizem que os hotéis da baixa fecharam as portas, ninguém entra, ninguém sai, um homem é atacado no seu carro, tenta entrar no hotel, porta fechada – ninguém entra – ninguém sai.
São 16 horas, aqui ainda se ouvem tiros.
É fácil começar uma guerra numa tarde assim.
Dois polícias armados entram no prédio das traseiras. Calmamente, sem pressas. Na varanda ao lado uma mulher dobra roupa sentada no chão. O meu guarda do turno do dia não veio, o da noite já saiu. No prédio em frente uma mulher bonita sobe três andares com um bidon perfeitamente equilibrado na cabeça.
Morre-se do outro lado da cidade, e eu bebo chá de gengibre e penduro máscaras africanas na parede da minha casa nova. O mundo não é justo.
No mar consigo ver dois barcos tradicionais, de velas brancas, deslizam serenos, com o vento.
As empregadas do andar de baixo conversam banalidades.
Eu medito sobre a mudança. Desde que decidi sair do bairro central que o faço. Mudar é desmontar e construir, é sobre pertencer e ser livre. Medito.
Passa um homem a abanar despreocupadamente um plástico na mão. O guarda do prédio em frente vê as imagens de uma revista National Geografic.
Doem-me os pés. Escrevo sms aos amigos a perguntar como estão. Alguns não me respondem… mas na verdade a maior rede de comunicação móvel de Moçambique não funciona bem.
Recebo chamadas de Portugal, as notícias lá são… alarmistas talvez, a família está preocupada.
Estou sozinha, não saio.
Na acácia frente a minha janela apenas duas flores vermelham um dos ramos. A árvore está quase seca e em contraste a cor das flores parece ainda mais bonita.
Um rapazinho na varanda ao lado brinca com uma bola, olha-me surpreso. Sim, sou nova aqui,
Oiço Nina Simone no tema 4 Women. Oiço um tiro bem perto, corro à janela, o guarda da casa da frente sorri, não é nada. Sugestão apenas.
- Aqui estamos bem, senhora, essa é boa zona. - Não sei bem nestas alturas o que quer isto dizer mas tudo está calmo aqui.
Ouvem-se gritos, ao longe, oiço sirenes de polícia. Ou será ambulância? Nunca vi mais que uma ambulância no mesmo dia em Maputo...
Passa um homem embriagado a gritar mensagens apocalípticas. Duas crianças com pastas às costas riem. O guarda no rés-do-chão adormeceu.
O sol desce. Passam mais carros agora, devagar, como se fosse feriado. Escrevo à janela, o bafo de calor é forte, pesado.
Estamos no Ramadão, a mesquita canta. As famílias dos prédios vizinhos levam para dentro de casa as panelas cozinhadas na varanda, em fogão de carvão.
Amarro uma capulana à volta da cintura e subo ao terraço para ver a cidade com a luz dourada do pôr-do-sol. O trânsito na Av. 24 de Julho já está aberto, ouvem-se vozes ao longe, outra mesquita canta a Alah o misericordioso. Ao meu lado pousa um corvo preto e branco, a que aqui chamam corvo da índia. Olha-me, grasna.
Ligam-me os amigos de Portugal e de maputo os amigos portugueses, a colega finlandesa, a brada sul-africana, a amiga italiana… mas os moçambicanos? Com a excepção de um preocupado mais ninguém parece estranhar sequer. Pergunto como estão na zona e respondem com um  e um “beijos!” Não é estranho o dia.
E na verdade não deixa de me atravessar a mente várias vezes: hoje era um bom dia para namorar.
Em África tudo muda num minuto, ouvi muitas vezes dizer.
Assim mesmo, como se o minuto africano fosse mais rápido ou imprevisível que qualquer outro.