sexta-feira, 6 de maio de 2011

Coisas indianas


Acordo com o som da bomba eléctrica que puxa água para a casa. Oiço o guarda a varrer as folhas no quintal, e a empregada a falar com o cão:
- Camio? Camio tem fome? – desisti de repetir o nome do meu cão, Rami é palavra que não entra na cabeça de D. Leontina, e como os cães ao contrário de nós, não estão ligados aos significados das palavras mas apenas à intenção que a elas damos, ele abana a cauda quando ouve o seu nome, que seja Camio então!
Acordo com os sons de África, sim, acho que desde que cheguei a este continente que nunca mais soube o que é dormir até tarde. Claro, durmo até às 9 horas, e aqui é hora escandalosa, preguiçosa, hora já angulosa de sons e de calores que a ventoinha já não alivia.
Levanto-me e, logo embatendo contra os meus hábitos de privacidade mais europeus, ela está na porta do meu quarto, surpreendo-a à escuta e ela desculpa-se com um pedido:
- Senhora, não tem arroz, nem pó de caril não tem…
- Sim? Eu vou comprar.
- Mas, senhora, porque não vamos? Aqui mesmo na rua, aqui no mercado da Machava tem, eu vou com senhora, vamos juntas, eu lhe carrego saco, assim – no rosto uma expressão de vaidade orgulhosa - lhe seguindo, afinal não sou sua empregada? Yuh! Senhora nem parece que tem empregada assim de ir “suzinha “só? Nada, nem fica bem.
Eu não sei bem como explicar isto mas, para mim, caminhar num mercado de rua e discutir preços de montinhos de arroz, de caril, de limão ou cebola, em bancas infindáveis de coisas, no chão coberto de capulanas e ”mamanas” sentadas em agitada conversa em língua que desconheço, seguida por uma empregada que carrega o meu cesto… enfim, ainda não é para mim.
Como explicar que facilidade, esse conceito, na prática é isto mesmo, o que se relaciona com a nossa experiência e a nossa estória. O que não fazemos esforço de entender, isso sim é a facilidade. Por isso o que é fácil para ti pode não ser para mim. E por isso para mim, pelo menos por enquanto, é mais fácil ir a um supermercado e escolher das prateleiras as embalagens que já conheço, ler nas etiquetas os preços claros e inequívocos. 100 meticais, ok, eu entendo, pouco importa para mim que esteja a pagar uma marca, uma embalagem, uma importação da África do sul… para mim é mais fácil… e ser estrangeiro é isto mesmo, pagar pela deslocação do corpo, pagar o desenraizar do coração.
Por isso apesar das reclamações de Leontina eu saio para o supermercado, e lá escolho as minhas coisas.
Passada talvez uma hora eu regresso a casa, ela está à espera, de cara em sorridente suspense. Eu abro o caro e ela vê os maningue sacos. Entusiasma-se. De novo me arrependo de ter estas ajudas que são as empregadas. É inútil, eu para senhora colonial não tenho talento pah! Ainda me atrapalham os tempos do passar dos sacos, os jeitos no arrumar e desarrumar das coisas que comprei. Os desajeitados gestos de quem, naturalmente, manuseia coisas que desconhece.
A Leontina parece criança em dia de natal, agarra tudo com curiosidade e excitação, como se desembrulhasse presentes.
E eu, eu tenho pressa, mulungo sempre tem, e sou daquele tipo de pessoa que se vejo uma coisa a ser feita lentamente, ou de maneira diferente da que me satisfaz, vou lá e faço eu mesma, poupando minutos de explicações e tempos de hesitações. Eu prefiro ser eu a fazer. Mas aqui não tenho hipótese, e desde o iogurte ao sabonete íntimo, passado pela lixívia para roupa de cor tudo engelha a testa de Leontina, e ela desfia questões:
- Senhora, isso aqui é o quê?
E eu lá sigo em explicações… e confesso que algumas coisas são difíceis de explicar… ela pára em tudo, e diverte-se infantilmente com o que desconhece. Já provou dois iogurtes e agora morde desconfiadamente uma bolacha de arroz crocante. Continua a agarrar cada uma das coisas e pára inevitavelmente num saquinho de coisas pequeninas, coloridas, com o rótulo onde está escrito “Mukhwas - mouth freshner”:
- Senhora, e isso aqui?
- É, ysh…- aqui até para mim é difícil explicar:
- Isso aí… sabe aquelas coisas que se come depois da refeição… - ela olha-me interrogativamente:
- Hum? – eu tenho de novo,
- Conhece comida indiana?
- Indiana??!! De monhé?
- … sim…
- Ysh senhora não conheço…
- Pois, mas depois da comida indiana servem muitas vezes estas coisas para… - ela interrompe-me,
- Senhora são coisas indianas? Ok! – parece definição que lhe basta, e a partir daqui já não importa que encontra, se é amaciador para o cabelo ou pó de talco, ela olha-me e questiona:
- Senhora, assim isso aqui também são coisas indianas?
- Sim… sim… - em nome da paz do lar uma mentirinha inocente não faz mal.
É engraçado como catalogamos o que desconhecemos, como nos assusta que seja diferente, como nos conforta que possa ser resumido assim mesmo, com uma referência de naturalidade ou credo; podendo fazê-lo sem pudor associamos o tal misterioso desconhecido a um grupo étnico ou linguístico. E parece que todos as usamos de alguma forma, as generalizações
Anoitece, e a mim apetece-me mesmo comida indiana, escolho um dos muitos restaurantes da cidade de maputo.
-Senhora vai na cidade? Gosta dessa comida de monhé?
- Sim, gosto. – ela desdenha,
- Ok…
Depois da refeição pergunto por sobremesa, o empregado é moçambicano e faz parte daquele grupo de trabalhadores que desacreditam os seus empregadores:
- Senhora, sobremesa? Yowe yowe… eu só posso ir perguntar mas acho que aqui não tem, só mesmo aquelas coisas indianas…
Eu sorrio, é mesmo isso que me apetece.

4 comentários:

  1. Que delícia de texto... Obrigada por partilhar esse mundo connosco!

    (um) beijo de mulata

    ResponderEliminar
  2. Joana, n sei se gosto mais da tua forma de escrita ou da estória!

    Bj, demais!

    ResponderEliminar
  3. Joana,

    Rica estória, de vida, de aprendizagem e,saber.
    O custo de oportunidade para quem não nasceu africano(a).
    bjs

    ResponderEliminar
  4. muito obrigada a todos :)) adoro escrever! e áfrica é generosa nas estórias que me oferece sem dúvida! beijo para voces

    ResponderEliminar