sábado, 25 de dezembro de 2010

Pequena


- É pá… mas este espectáculo não sai, tantas coisas a acontecer… Ontem era porque cenário não estava, hoje problema com divulgação… temos de fazer alguma coisa… Ok, é hoje! Vamos fazer alguma coisa.
- Mas fazer o quê? Vamos ensaiar mais e tentar organizar melhor, né?
- Nada, Joana, não é isso que está a correr mal… achas que é o quê? Isso não é de nada, o espectáculo não sai, apenas isso! Precisamos fazer alguma coisa!
- Sim, mas o quê?
- Meninas, vamos para o hotel, vão lá comprar uma garrafa de vinho.
- Vinho?
- Ya, vinho Joana! Tragam lá e vamos resolver isto.
- Mas como é que o vinho vai resolver… eu não entendo.
- Tá branca essa! Não é para e entender, é para fazer! Vão lá.
Há itinerância de espectáculo com a companhia de teatro de Maputo com quem trabalho, e estamos em Pemba, láaaaaaaaaa – alongando o som como percorrendo a distância - no Norte.
Tudo aqui me lembra a Tanzânia, a pequena aldeia onde vivi. E sei que não era fácil de amar o dia-a-dia exigente de uma aldeia como Mikindani mas sinto uma saudade. De novo as paixões, a temperatura quente, o ar húmido, as cabanas de lama, as mangueiras… os embondeiros! Tinha saudades destas árvores monstro. Da maneira como ocupam a paisagem, da dimensão que tiram às coisas. Árvore que parece brincar com os tamanhos do que a rodeia. Tudo parece estranho, desajustado, cómico… parece que a sua presença denuncia um jogo, um cenário, uma falsidade… porque parece não pertencer a este mundo, parece feita de outra matéria… sim, tinha saudades.
Fotografo os embondeiros no regresso para o hotel, perco os olhos nos topos altos dos coqueiros, sorrio com a minha África.
- Joana como fotografa! Ysh! Aqui ela está bem! Gosta disto, esses sítios pequenos! Esse calor que não dá para fazer nada… Pá, joana fecha a janela, ar condicionado tá a sair assim! Deixa as fotos, é tudo igual, são árvores só.
Eu vingo-me dos dias na cidade e viajo…
Os mundos sobrepõem-se, em viagem. Como missangas dentro de um frasco de vidro, missangas ordenadas por camadas de cores, umas sobre as outras. Ordenadas.
Viajo e acumulo missangas, e a memória surge como a mão que agita o frasco, nenhuma cor combina já, todas se tocam e mesmo sem mudarem de cor respondem aos reflexos das que estão próximas.
E só mais tarde, só nos momentos mais avançados da viagem sou surpreendida por estas memórias misturadas, as que surgem dos cheiros e dos sabores, as que me apanham desprevenida na moleza das tardes quentes, as que me fazem escrever…
Pemba é uma vila pequena frente a uma baía de Índico. Perfeito. O cenário é perfeito.
No domingo passeamos pela praia e parece que toda a gente o faz. Bebe-se cerveja fresca nos bares na praia, come-se marisco grande nas esplanadas. Eu viajo.
E agora, enquando o mar morno me amacia os pés, faço das missangas colares.
Faço e desfaço fios de contas. Volto a fazer.
Não, não tenho vergonha de viajar, de aproveitar todos os momentos de trabalho para fingir que estou de férias
- Bom dia, estrangeira! Mata-bicho já tomou?
- Nada, eu acordei cedo para caminhar na maré mais baixa, mas estou a vir agora mesmo, venho pela areia.
- Ooooh, turista, estamos à tua espera para o ensaio daqui a 30 minutos!
- Sim, vou só passar no pontão.
- Ei, menina da praia, estás a mudar de cor, vamos jantar?
- Peçam para mim, eu vou dar um mergulho aqui mesmo em frente.
Caminho na areia. Ele aproxima-se, os olhos brancos.
Ele aproxima-se, o passo certo de um pé descalço.
Ele aproxima-se:
- Habari za leo?
- Mzuri, mzuri sana. Habari za wewe?
Cumprimento swahili, que se fala por aqui, toca-me na fraqueza e lembro-me das noites misteriosas de Mikindani, onde de noite eu esperava...
Sentamo-nos para jantar e o empregado demora, o pedido tarda, a comida atrasa… e eu lembrada da indolência doce das tardes naquela aldeia aqui tão perto… dou mais um mergulho.
- É estrangeira mesmo, nós ainda nem fomos à água! Ela já tomou mil banhos, ya... brancos? É outra coisa.
A espera é isso, este estar quieto, dentro do tempo que não seu usa. Esperamos o jantar e com isso esperamos alguma coisa mais, e eu fico mais atenta ao que acontece nesse desacontecer. E gosto de o viver assim, no limbo escorregadio do que ainda não chegou.
As mangas crescem no ramo, espero que amadureçam, uma manga madura ao acordar é uma das minhas doçuras preferidas de Dezembro…
Sim, gosto de viver aqui, e todos os dias sinto que nasci cá, e todos os dias sinto que acabei de chegar.
Mantém-se o verão, mantém-se a paixão. E alertam-me os amigos para o perigo deste meu gostar de tudo, deste meu prazer no “desconseguir”, no “confusionar”, no “enjoyar”…
Sim, já sinto os perigos, eu sou nómada… e nesta paixão o “sentir falta” começa a atrapalhar… sim, agora atrapalha-me.
O amor é sedentário, a paixão é nómada. Eu vivo a paixão e sonho com viagens, planeio os caminhos do próximo ano em resoluções de ano novo que prometem liberdades. Mas… se esta minha paixão se transforma… passional, exclusiva, possessiva… se me surge mesmo um amor? Por um continente, por um clima, por um homem… pela expressão e pela descontracção de um povo tão… apaixonante.
Por agora não sei, corro os riscos e escrevo para o Índico. Que a brisa adocicada e quente das monções daqueles com quem partilhamos margens, da índia, faça comigo os fios das memórias.
Compro o vinho e regresso para o hotel, depois do jantar reunimo-nos no jardim.
- Ok, venham todos, vamos, vocês venham para resolvermos isto.
- Papá? Papá onde está? Onde está mais velho? Aaaaah, papá, vem lá! Joana, pequenina, chama lá Samuel e vem pá.
- Mas…?
- Não pergunta e traz o vinho. Não abras! Pai abre.
- Ok, pois, eu abro e vocês aprendam! – ele abre a garrafa, eu aproximo os copos -
- Não precisa copos. - Acocora-se no chão e delicadamente deita um fio de vinho na terra, fala com o português e o xangana misturados – quero pedir licença para fazermos nosso espectáculo aqui, nesta que também é a nossa terra… - eu acho que é uma brincadeira e rio.
- Joana pá!
- …Sorry lá….
- Peço protecção e desculpa por não estarmos a estrear lá na nossa casa Maputo - toca a terra com a mão, e continua a falar este pedido rezado - Sabemos que casa é lá, e nosso coração está lá, iremos levar nosso trabalho para famílias e irmãos, mas pedimos esta excepção para começar aqui… - ele levanta-se e olha para mim.
- Pois, vocês não comunicam com antepassados e depois estranham! Nada, as coisas não funcionam se não falamos com eles, agora tudo vai correr bem. Os copos?
- Mas… pode-se beber?
- Sim, é vinho isso minha filha! Para “paxar” antepassado é o primeiro a beber, agora já podemos partilhar todos.
Brindo com esta minha família, é natal agora, e para mim é tempo que sabe sempre a saudade, os brindes sabem a memórias cheias de cheiros, e a paisagem são as formas encolhidas do frio da serra, lá, do lugar onde eu nasci. Aqui não há serras nem frios, caminho para o embondeiro e peço fotografias, apenas para me sentir de novo assim. Pequena.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Verão moçambicano


Está calor. Tenho no corpo a sensação infantil das férias.
Para mim verão é isso, é expectativa. Dá-me uma dormência respirada, o bafo de calor. O suor que pinga sempre leva-me a banhos que me lembram as piscinas da infância. E mesmo que trabalhe todo o dia, nos mais pequenos intervalos vou lá para fora, e respiro as promessas que o calor traz no ar.
Para mim no verão todas as noites são… novas, apetece estrear cada anoitecer com uma bebida que veja o pôr-do-sol vermelho que só o ferro de África nos dá.
É Verão, nas últimas semanas as chuvas vêm de noite e quando os trovões zangam o céu não resisto aos banhos da água que cai precipitadamente quente… a cidade fica alagada e ganha correntes… dizem-me os amigos que aqui nas terras dos feitiços os rios podem ser pessoas e as pessoas podem ser rios… dizem que o Rovuma é capaz de fazer assim mesmo, descer da distante fronteira do norte e na cidade fazer-se respeitar.
Chove e tudo fica… pronto para… acontecer.
Verão é paixão. Para mim é.
Verão moçambicano é assim, tem misturado nas temperaturas as tradições e as estórias da terra e da água. Nas pessoas o toque liso da pele com o tempero acre-doce do suor.
Moçambicano é paixão e indiferença. Grito e segredo. Carinho e agressão. Elogio e ofensa. Moçambicano no amor é gingão, é quente, é confiante, é...
Moçambicano é tradição de poligamia e importação de monogamia.
Moçambicano é frieza da formalidade de manhã e escorregadio calor húmido de tarde.
Moçambicano controla:
- Tás aonde?
- Ei, telefonas para saber onde estou? Vocês como gostam de perguntar onde estão pessoas!
- Ya, GPS aqui, quero fazer busca e captura.
Moçambicano é gourmet:
- Eu final de semana não como comida da empregada! Nada, aí esposa que cozinha!
Moçambicano não tem segredos:
- Não, eu confio em ti, sou teu, eu! Tu és minha. Vamos lá trocar de celular 24 horas, aceitas?
Moçambicano joga:
- Ya, tu és independente e tal... estamos bem nós, já és quase minha mulher, agora eu vou-te dar as balizas!
Moçambicano educa:
- Mas temos de ter valores.
- Quais?
- Ai é? Então como vais educar um filho?
- Ele vai aprender seus valores…
- Sozinho? Nada! Quando tivermos filho logo que ele desmame fica comigo! Quero ver depois tua independência, vais me ligar TO-DOS os dias!
Moçambicano trabalha em equipa:
- Alô, tás zangada, eu sei, vou te passar meu “advogado”.
- Sabes joana, é bom saberes que… tem contextos específicos… é bom ver que homem africano tem as suas… características, tu já estás aqui há algum tempo e por isso podes entender essas coisas… não é? Já não és da Europa, podes mesmo ser mais tolerante e compreensiva também porque nem todas as pessoas tem a mesma… maturidade, e homem africano nalguns assuntos tem dificuldade em ser ele a avançar, e talvez pudesses ser tu a avançar e a criar as condições necessárias para ele falar contigo e abrir o jogo.
Moçambicano é do mundo:
- Nós não podemos ser namorados. Não a viver aqui! Sim, aqui não íamos nos respeitar, só noutro país… Sim, tinha de ser noutro país. Aqui em Maputo?? Nada, se perde respeito aqui!
Moçambicano é pai:
- Depois eu vou te encher barriga e aí quero ver quem é que vai tchilar até às cinco da manhã na Rua d’Arte até ficar sem voz! Vou ser eu!
Moçambicano tem medo:
- Parabéns pela cerimónia, e… felicidades não é?
- O quê?
- Ya, mais um a deixar o nosso clube…
- Ei, nada! Isto não é nada! Eu sou solteiro na mesma, casar não é de nada, sou solteiro eu! Sol-tei-ri-ssi-mo!
Moçambicano cumpre:
- Homem que é ciumento não é competente!
Moçambicano declara:
- Alô? Eu estou com os copos e o meu coração ainda é teu.
Moçambicano descrimina:
- Ei, eu não gosto de mecha, extensão, não sei quê! Eu gosto de cabelo natural.
- No outro dia, quer dizer – reformula - há um ano, aquelas… essas meninas daqui que mandam sms “papai…” depois chamam essas nomes “papa, pai” e pedem “tou pidir crédito...” Sou banco eu?!
Moçambicano procura:
- Ontem não te encontrei na night.
- Querias? Porque não me ligaste?
- Nada, queria te ENCONTRAR, chegar assim de surpresa e fazer "cheguei".
Moçambicano ameaça:
- TU vais te apaixonar por mim! Eu sou teu homem diz lá! Diz! Ah tas a mentir! Diz com sentimento! Anda lá admitir, tens tanto problema em assumir porque, pah! Orgulhosa. Anda lá, acabaram as eleições, ganhaste.
Moçambicano explica:
- Ya, sabes… desculpa a cena do outro dia mas… ela é muito ciumenta… tu mandaste sms né? Eu estava no banho, ela apanhou e viu, então eu liguei-te só para ela ver uma coisa! Entendes? Desculpa lá, não deu para evitar o desequilíbrio e a ciumeira… Por isso é que a relação tá no fim, não dá pah…
Moçambicano é fiel:
- Ysh! – bate-lhe nas costas - irmão, salvei tua pele, ligou tua dama, ligou aqui, quando estavas lá dentro, eu falei, “neguinho está aqui comigo, só foi no banheiro”.
Está calor.
Privo com moçambicanos que por uns momentos esquecem que sou estrangeira, branca, mulher. Sim, agora e aqui, nesta noite, depois de mais de três copos de Laurentina preta tudo se fala… porque eu não sou a legítima, a mãe dos filhos, a que vive lá em casa.
Estou na esplanada com mais de 10 homens, entre moçambicanos formados no Brasil, jornalistas e desportistas, estrelas de televisão, fotógrafos e frelimistas. A conversa faz-se pelas mesas, sem limites de conhecimentos ou formalidades de contextos, e entre o comentário ao jogo de futebol que passa no ecrã gigante e a conversa sobre as mulheres tudo entra no mesmo ritmo, na mesma efusiva alegria de quem vê um golo.
Na despedida comenta o sul-africano:
- My friend, your wife is beautiful.
- Hey, I am not is wife! C’mon if i was his wife I would not be here!
- Yes, she would be at home…
- Sleeping…
- Ya, a dormir…
- Ya, a mandar mensagens.
- A telefonar… - toca o celular, ele aclara a voz, levanta-se, compõe a camisa – Olá, como estás?
– “Como estás?” Aaaaahhhh é esposa essa!
Está calor, há muita humidade no ar. Agora não chove.
No rádio toca “ela cozinha muito bem, eu é que não como em casa…. Ela me espera tooooooooooda noite, só chego de madrugaaaada…” – ele levanta-se:
- Gramo dessa música, anda cá! Dá lá uma passada comigo!
Dançamos, a camisa dele cola-se ao meu vestido e os suores misturam-se.
Verão é paixão. Para mim é.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Mozambique no fake


Em Moçambique vive no mesmo coração a desconfiança e o orgulho do que é nacional, e nesse conflito o lugar é de personalidade forte. Forte na miscelânea; de línguas, de vozes, de contextos. Sim, é espantoso o contraste entre a que carrega às costas o bebé e vende amendoim torrado na rua e o que sai do Jaguar em fato Armani e sapatos Ferragamo importados. Maputo é… difícil de explicar e forte no sentir e é na procura desta expressão que transcrevo, sem edição, a carta online de um amigo de Maputo.
RASCUNHO DE UMA CARTA ABERTA A UM DJELAS QUALQUER…
Hey, you… Este texto é para ti mesmo, djon! Tu que me tens estereotipado e catalogado em função do que tu presumes ser que eu seja. Eu vou te ajudar a entender-me:
Modéstia a parte, eu sou um dos gajos mais influentes do Facebook nacional, heheheheheheheheheh… Da mesma forma que venho teclando contigo, faço o mesmo com tipos como o Basílio Muhate, Dino Foi, Quitéria Guirrengane, Erik Charas, Eduardo Namburete ou Filipe Vieira (jornalista de um mass-media internacional). Teclo com estudantes universitários, actores de teatro, donzelas, académicos vários, empresários, frustrados, europeus, deputados, congoleses, desempregados, batedores de carros, brasileiros, escritores, prostitutas, vendedores ambulantes, playboys, cientistas, assaltantes a mão armada, donas de casa, brancos, músicos, etc… Tipos com potencial para perpetuar ou para mudar a merda do país em que vivemos ou o seu espaço físico (Europa, Ásia, América, Xipamanine, Sommerschield, UEM, barracas, igrejas, tabacarias, chapas e sei lá mais o quê…);
Eu vim dos subúrbios mesmo. Daqueles becos sujos e lamacentos da Mafalala, onde já dormi literalmente em cima de charcos de água estagnada. Vivi dois anos em Quelimane numa palhota coberta de folhas de coqueiro e com paredes de areia maticada, dormindo em esteira que não conseguia ficar impermeável à humidade daquele chão do bairro de Santágua… Já comi peixinhos secos, quase invisíveis, assados em fogo de lenha, em água e sal com xima amarela durante grande parte da minha infância. Não tenho berço mesmo, como uma vez disse uma Patrícia de 40 anos de idade aqui mesmo no Facebook, a meu respeito.
Nunca precisei (nem preciso) de cunhas, nome de família, escovismo servil ou seja lá o que for para triunfar na vida. Mesmo com todas as adversidades com as quais convivi, tenho o maior orgulho de dizer que fui sempre o melhor aluno da minha turma (houve vezes em que era o segundo ou o terceiro, mas já na faculdade, heheheheheheheh). Eu ia à escola sem uniforme (ou com uniforme incompleto, ou com uniforme quase idêntico ao dos restantes), com sapatos rotos e de barriga vazia, e estudava na mesma sala com filhos de gente graúda deste país. Consegui formar-me graças ao esforço e confiança dos meus pais (especialmente da minha mãe) até ser a pessoa que sou hoje.
A minha mãe vende ovos, sabias? E colocou, sustentou e retirou da faculdade um tipo com os tomates que me orgulho hoje possuir. Fiz a faculdade inteira a morar numa casa de um quarto e sala, partilhada com mais 5 irmãos, sem luz e sem água, à 20 Km da cidade capital. Em Tsalala, sabes aonde fica isso?! E há dez anos atrás aquilo era o deserto do Sahara com floresta densa!!! Eu lia fichas e livros de 1 Kilograma (de Samuelson, Huntington, Krugman ou de 300 outros autores), a luz do candeeiro, todas as madrugadas de 2001 a 2006, e graduei quase com distinção…
Hoje até tenho a ousadia de dizer que não uso nem metade do meu potencial (por circunstâncias diversas) e mesmo assim continuo sendo SOBERBO (com maiúsculas e boldado mesmo, significando magnífico, e não presunçoso, heheheheheheheh) que a maioria dos meus colegas, amigos, concidadãos, conterrâneos, compatriotas, companheiros de jornada, de barraca e de vida diversa, etc, que usam quase todo o seu potencial intelectual (ou físico ou mental ou produtivo, whatever) e fazem patavina alguma… Com o pouco que me se tem dado a fazer (que já é excelente, comparado com o que fazem os milhares de lambe-botas, medíocres, alinhados, conformados, parasitas, yes-manistas e servos hipócritas do sistema), tenho contribuído à minha maneira para o desenvolvimento deste país, mesmo recebendo mal ou mesmo nada. Diga à vontade que sou convencido e tal, e que vou dar com a bunda no passeio dos 33 andares, quando for a cair do estandarte em que me julgo encontrar… I DON’T CARE, BABY! O meu mundo não é este nem é aqui, apanhaste? Estou aqui pelo destino e não pretendo morrer em vão, igual a ti ou aos outros que se parecem contigo ou que os tens como referência de vida ou modelo de postura. E apesar de não me sentir parte deste mundo, não desistirei de viver nele porque tenho a plena consciência de ter vindo para aqui com uma missão por cumprir, e vou segui-la até ao meu fim, son. Escreva isso.
Podes falar ou pensar o que te apetecer a meu respeito. Eu sei que cheiro mal, man... Não sou nem pretendo ser perfeito. Sou um gajo focalizado, extremamente competente em tudo o que faço (até a beber, no job ou na cama com as mulheres da minha vida) e isso já me basta. Tenho luz própria, percebes?... Este texto não é de modo algum auto-promotor ou sei lá. É só para me perceberes melhor. Não é da tua conta se tenho pretensões de grandeza, se tenho problemas de regressão psicológica ou se bebo porcamente, djon… A vida é minha. Ou é tua?! Aonde é que te dói se o meu salário serve para sustentar os meus vícios e caprichos? Quem é que esfola o cabedal, eu ou o teu pai? Grrrrrrrrrrrrrrr… Eu já me dou por satisfeito se hoje compro um fato Giorgio ou se tomo 13 caixas de cerveja preta em dois meses, sem pestanejar!...
Para te deliciares, e em jeito de fecho, meta no teu traseiro estes versos:
"Deixa a vida me levar para onde a vida quiser
Mas às vezes também vou para onde a vida não quer…"
(Gabriel o Pensador, "Deixa Quieto")
E porque este mano é dos que gostam de partilhar, de dar a cara, de se assumir – com o orgulho que não preciso de reforçar porque esta carta fala por si - este identifico-o: Edgar Barroso. E porque eu gosto das coisas “no fake”, verdadeiras mesmo, ao Edgar, o meu grande kanimambo (obrigada).

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Peneira vida


Quando cheguei a Moçambique montei casa, e nas práticas locais casa envolve empregada, e guarda, e jardineiro… E nas práticas locais ser senhora tem regra, faz assim, e assim… e ouvia eu todos os dias:
- Mas senhora… Senhora não sabe afinal? – seguia-se um olhar de soslaio, um desdém que afirmava categoricamente, “esta senhora nem sabe ser senhora!”
E cada dia sentia mais forte este meu destalento para senhoriar casa em África.
- Senhora, não tem pilão aqui em casa.
- Senhora, não tem ralador de coco aqui em casa.
- Senhora, não tem fogão de carvão.
- Senhora, não tem esteira….
A cada uma destas afirmações seguia-se a minha expressão aberta, a minha interrogação escandalosa. Eu se na grande maioria das vezes não sabia de que falava Leontina, numa minoria das vezes pensava que sim e arriscava e na totalidade destas tentativas eu… falhava.
- Senhora aqui nessa casa nem peneira não tem!
Eu não sabia. E na verdade como nas mais profundas aprendizagens da vida o entendimento de tudo isto só chega mesmo mais tarde. Sim, claro que com a ajuda da empregada a casa passou a ter todas estas coisas, mas na minha cabeça a função delas era… misteriosa. Não tanto a funcionalidade, um pilão de inicio estranha-se mas depois vê-se bem para que serve. Ou não… um utensílio em casa africana não é apenas isso. O que me parecia ver nos olhos de Leontina é verdade, para ela uma casa sem estas coisas nem é casa!
Visitei Nampula. Viajo sempre.
E em Nampula encontramos outro povo.
O povo da floresta, que tece com ervas a vida.
O povo dos Grandes Lagos, que peneira entre ervas seus grãos de vida.
O povo do sorriso que habita muito Moçambique. Espalhado pelas terras, junto aos lagos e na costa, entre as melhores comidas e as magias mais densas.
As ervas, os frutos, as sementes.
- Aqui temos medo, joana. Homem que viaja para Nampula para trabalhar não regressa, macua engarrafa pa!
Claro que me falam da beleza, da beleza das mulheres.
Das peles claras na misturas das gentes, nos sorrisos rasgados, no arrastar misteriosamente sensual de um chinelo, no manear lento da anca.
Macua trabalha as intimidades com óleos de coco, e os músculos mais secretos enfeitiçam os homens. Aqui diz-se assim.
Macua não trabalha, banha-se e trata-se com pós de mussiro – pó feito no esmagar de um arbusto - e outras ervas mágicas.
Nos rostos as máscaras de beleza emitem os sinais.
Nas ruas de Nampula passam as mulheres, chinelos arrastados, capulanas na cintura, trouxa na cabeça e no rosto… a máscara branca do mussiro.
Nas ruas de Nampula as mulheres passam a sua mensagem, não é preciso falar ou cantar, olhar com sugestão ou acenar o atrevimento, não é preciso. Basta saber no rosto desenhar a máscara de pó, e dependendo das formas e da opacidade das cores e das quantidades comunicar. Sim, eles sabem.
São beleza e comunicação, com o homem marido, com as amigas, com o homem amante… dão sinais da disponibilidade para o amor, do estado físico, falam das vontades e das indisponibilidades. Falo das íntimas, claro. Macua é intimidade, é fogo no amor.
E dizem que são as montanhas que enfeitiçam as gentes.
As montanhas enquadram a paisagem feita de longos coqueirais… ainda me deslumbram os topos altos dos coqueiros, que doiram ao sol.
O calor é seco. E na rua principal de Nampula eu caminho.
O sol brilha o azul do céu. Não sei como é mas o ar parece assim, brilhante.
Em frente ao hotel uma criança pede esmola, está no chão, as pernas parecem braços e são inúteis para caminhar, às mãos parece que nenhum pulso se liga e são inúteis para agarrar. Ele arrasta-se no chão. Olha-me. Apenas. Eu olho de volta. Tiro uma fotografia, ele não sorri.
Visito nos mercados os lixos e os peixes, o tabaco enrolado e as longas bancas de missangas de plástico, todas as cores e combinações. As vendedoras de carvão, longos corredores de chão enegrecido pelo pó de carvão. Neste chão sentam-se as mulheres que carregam crianças. As crianças mulheres vendedoras, sorriem para mim.
Vejo nos mercados os objectos de casa… aprendo, aprendemos sempre.
Nas bancas ao fundo vendem ethekwa.
Feito de tiras finas raspadas das canas de bambu. As tiras entrançadas no fundo, terminadas com o muyepe, um pau bem raspado, cosida no final com o arbusto hururi.
Na ethekwa a mulher transporta e conserva as sementes, os frutos e cereais. Nela ela escolhe o arroz e o milho, a mandioca. Aqui neste objecto vemos o centro da terra, e sem ele mulher não é mulher de verdade, precisa de vizinha, de irmã, de mãe… precisa de perder homem para segunda e terceira mulher.
Aqui começa a vida, aqui se iniciam os jovens.
Ethekwa é abutre e milhafre.
Olaquiwa ensina a todos os jovens como se faz, ensina a entrelaçar no centro as tiras, ensina sobre o centro da terra, sobre a estabilidade do lar.
E quando o homem chega a casa e vê o cântaro de água tapado com ethekwa e com o pau que amassa a caracata por cima ele sabe. Se a peneira está levantada ou ao contrário, pendurada ou no chão, ele sabe. Ele sabe da comunicação do amor. São as palavras do desejo que se revelam assim. Os desejos e os corpos, a indisponibilidade para o sexo, o momento das luas, o convite ao amor.
Nos ritos femininos aprendem as mulheres a falar a partir deste objecto.
Os bebés conhecem cedo o toque das tiras entrançadas. Depois de ser protegido com o banho wakulelia muana a criança deitada na ethekwa é lançada aos quatro pontos cardeais, autorizando o casamento; ou trocada entre mãos saindo e entrando na casa - protegendo dos espíritos.
Está presente nos primeiros passos, quando a criança tarda a começar a andar é sendo arrastada em cima das tiras entrançadas que começa infalivelmente a caminhar.
Está presente na morte, é com ela que abrimos a cova, é com ela que lançamos as terras para tapar o corpo.
Está presente na magia, se o homem é abandonado, é aqui que se misturam os medicamentos tradicionais, durante três dias sivela (gostar) são misturados, e ao fim desse tempo o coração da mulher palpita e nele o desejo de voltar para casa.
A ethekwa é o lar, simboliza a estabilidade, toda a casa tem uma.
Na banca do fundo vendem peneiras, como a que faltava na minha casa…

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Da tolerância


Nos meus olhos o reflexo dos brilhos e no ar o cheiro de incenso, na boca a dormência morna do piri-piri e nas minhas mãos a tua. Estás aqui. Partilhamos.

Estou sentada, dançam há mais de uma hora na arena sagrada. Por tantas vezes já me apeteceu fazer o mesmo!
Conheço o suficiente os hábitos do extremo oriente para saber que não funciona assim. Tudo se faz com regra e formalidade. Espero.
Estivesse eu em África e já teria saltado para lá, aliás teriam vindo buscar-me!
Mas… espera, eu ESTOU em África!

Não, não estou. Aqui é um outro lugar.

Em Maputo há um festival. Sabias?
Eu não sabia. Sou estrangeira.
Somos sempre, mas a sensação é nova, temperada. É quente é fria, é doce e acre, de sabor modelado pelo acompanhamento: um molho, um tempero, um refresco, um chá, água Vumba ou… eu levei um amigo.
Maputo é cidade diversa, escrevi muitas vezes. Sim, todo o tipo de pessoas, de nacionalidades, de origens, de culturas, de cores, de credos, de hábitos, de actividades, de filosofias, de práticas, de músicas, de comidas, de bebidas, de livros, de medos, de fé…
Maputo é um elixir de tolerância. Mas é preciso gostar de tomá-lo.
Por todo o lado o corpo entrega-se à observação, à escuta atenta. E enquanto estuda, no seu existir esforça-se. Trabalha na descrição absoluta do gesto, no cuidado no caminhar, na suavidade dos movimentos do olhar.
Mas é inútil, sou estrangeira aqui, e os olhares perseguem-me. As crianças fogem, ou olham-me descaradamente com o à vontade que só a ingenuidade assume. Os mais velhos sorriem. As mulheres olham-me em tempos pausados, estudam-me, desdenham. Os rapazes mais novos acenam, os olhos sugestivos e eu… eu delicio-me! Sem apanhar avião ou passar fronteira eu entrei num outro mundo, e acontece aqui mesmo, na rua entre a minha casa e o lugar onde trabalho.
A dança continua em energia espiralada.
Talvez por cortesia, porque os povos da Ásia têm destas coisas, convidam a dançar:

- Sim! – levanto-me.
- Ah! Bom… ok, espera, vou perguntar… se calhar não podem porque para nós esta dança é sagrada, e… por exemplo nós não comemos carne de vaca…
- Eu não como carne nenhuma. Nem de peixe.
- Ah, ok…
- Mas se não podemos não tem importância, é só curiosidade nossa.
- Vou perguntar…

A música repetida é tocada ao vivo, vários instrumentos em ritmos que lembram os sons afro-brasileiros, e duas vozes, uma masculina e uma feminina que cantam o que me parece um mantra. Dançam. Todos vestidos de brilhos, tradicionais Chania Choli para as mulheres e nos homens o Dhoti Kurta. Repetidos círculos em volta do altar central, em frente do grande altar onde nos olha Shiva montada num tigre, luzes e mil cores.

A dança é repetida, de inicio igual, aos poucos com variações, aumenta de ritmo e viaja até ao… transe. É dançada por mulheres, homens e crianças, tem palmas ritmadas e eu não resisto a acompanhá-las, pode ser sentada mas eu danço!

Ele regressa:
- Pois, parece que dançar não podem, desculpem mas para nós é muito especial esta dança, percebem?
- Claro. No problem.

Eu quero fotografar mas não me apetecem os flash, eu quero copiar os movimentos mas o corpo já não pensa, só faz, bate palmas, e palmas, e palmas.

Passa um homem carregando caixas com paus vermelhos, todos correm a agarrá-los.
- Porque dançam com os paus?
- Hum… porquê? É igual a antes, mas em vez das mãos, para bater usamos os paus...

Não acredito mas não estranho, na verdade mesmo eu que fui muitas vezes à igreja, por exemplo, pouco sei de algumas coisas que lá se fazem!

- Continuem a bater as palmas, vocês estão a apanhar o ritmo! Daqui a duas semanas podem vir dançar!
- Gostariam de comer alguma coisa? Bolinhas com especiarias, são muito boas. É a primeira vez que vos recebemos na nossa casa, por isso gostava de oferecer algo.

A educação nestas coisas é assim mesmo: aceitar, provar, agradecer.

Assistimos a dança Garba, ou Dandia Ras, a tal que se usa com os paus vermelhos, e parece que não se usam apenas como quem bate as palmas. Há os paus vermelhos e outros, decorados com cores e brilhos - tem origem na cultura Gujarati e nas lendas Hindus, uma que se refere a celebrações de colheitas, outra aos guerreiros na batalha entre Ram e Ravana no Ramayana. É o que celebramos aqui, a vitória do bem sobre o mal.

Uma das mulheres dança com um pote de barro, vermelho na cabeça:
- O pote Garbo! Tem dentro uma vela que foi acesa no primeiro dia do festival e que se deve manter assim durante todos os dias do culto.
A mulher dança concentrada, olha-me, conheço-a! Acena para mim.

O pote representa a mãe deusa.
A dança Dandiya Ras é feita à volta deste pote, adoramos a mãe.

Maputo é um exercício para a tolerância.
Sim, porque nós temos tendência para por as coisas em caixinhas não é? Para ver a vida com rótulos, não é? Mas é isso que queremos mudar. Não é?
Quantos partilhamos bairro, prédio, alguns mesmo flat, com pessoas completamente diferentes? Todos somos diferentes, e basta olhar o outro assim, pensando no que é estar no lugar dele. Basta isso. Basta olhar para as pessoas e não ver comunistas, monhés, muçulmanos, moluenes, frelimos, pobres, mulheres, prostitutas, makondes, chinas, catorzinhas, rongas, mulatos, assimilados, engenheiros, canecos, whites, buers, ministros, americanos, serventes, swazis, cristãos… basta olhar para as pessoas e ver… pessoas!
Quantas pessoas em Maputo se deslumbram com a novela “O caminho das índias” e criticam o cheiro “a loja de monhé” do incenso que queima na flat a seu lado?
- Nós não queremos que cometam um pecado.
- ?
- Foram vocês que pediram para dançar? Esta é uma cerimónia religiosa, antes de começar fizemos a purificação do espaço, a mãe de santo veio limpar tudo e por isso não gostaríamos que vocês… é que se subirem ali podem cometer sem saber um pecado e nós não queremos isso, eu pelo menos não quero.

Vivemos em comunidades, é natural, mas podemos viver em muitas, saber, conhecer, partilhar o nosso mundo no mundo do outro.
Não tenhas medo, não é por usares capulana que és atrasada nem é o perfume hugu boisse que te dá sofisticação.
Fui visitar o templo hindu de maputo e há muito tempo que não me sentia tão estrangeira aqui. Entrei e viajei. E não foi só dentro de mim, foi na cara das pessoas que vi onde estava e o quanto era estranho que eu estivesse lá.

Nava significa nove e rati significa noite. Durante nove noites a deusa mãe é adorada nas suas três formas: Durga, Laxmi e Saraswati. Nas primeiras três noites Durga é admirada na sua força e ferocidade. Nas três seguintes Laxmi é convidada para purificar e limpar a mente, finalmente Saraswati para o conhecimento superior. No final das celebrações o ego está destruído, e simbolizando isso mesmo uma efígie é queimada, no décimo dia, o Vijayadashmi, dia da vitória, dança-se a dança da alegria, Rasa, de Shree Krishna e os Gopis.

Não sabias? eu também não.
Fui visitar Shiva. E como anima!
O festival Navaratri é celebrado à noite, vivemos tempo suficiente a dormir sem saber, é tempo de acordar!

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Lembras das ruínas?


Ele canta:
“Deixa-me. Deixa-me ao menos subir aos coqueiros, beber a sura e esquecer de ti.”
Eu rio. É mentira, claro. É mentira que me ame, que sofre por não me ver. É mentira que sou especial para ele, que o faço alterar seus dias, seus hábitos, seu sonhar.
Sim, é mentira, mas mesmo assim eu sorrio. O seu beijo é doce, e eu aceito-o.
No prédio em frente cruzam-se nas escadas as crianças barulhentas e as mulheres de salto alto e cabelos falsos, cor de laranja. Sobem os degraus rapazes em fato formal, perfumados, na orelha esquerda um brinco brilhante. Eu olho, eles olham de volta.
O vento venta mais forte. Chega-me o cheiro da xima cozida na panela no fogão de carvão na flat mesmo ao lado. Cheira também a caril, acho.
Do terceiro andar um saco de lixo dependurado no estendal, pinga.
Ouve-se o som do ar condicionado a trabalhar na parede mesmo à minha frente. Eu estou cansada.
Espero. E escrevo.
Estou de visita à casa onde vivi mais de um ano, na baixa da cidade, e agora que me mudei as opiniões dos meus amigos ecoam em mim… sim, vivia numa zona… como dizer? parecem quase ruínas!
Lembro-me de ir visitar contigo as ruínas. Lembras-te?
Nunca escrevi sobre isso, acho que me tinha esquecido… viajámos a Xai-xai, estava ainda há pouco tempo em Moçambique. Viajámos para ver a praia, estava frio, avançámos pela areia mais macia, pelos caminhos mais secundários, fazíamos manobras para regressar e vi ao longe a ruína.
Um hotel enorme, frente ao mar… abandonado. Eu nem hesitei, pedi-te a câmara e avancei, subi para a prancha da piscina olímpica e sonhei com os mergulhos, as pessoas sentadas à volta em fatos brancos e chapéus coloniais. Há lugares que nos fazem viajar, é assim mesmo.
Avancei para o edifício principal, todo o rés-do-chão fechado, vidros ainda inteiros, algumas portas e entradas fechadas com tijolos e cimento.
Avanço a balbuciar coisas, aposto. Entusiasmada com a descoberta. É lugar abandonado, mas cuidado, alguém guarda este lugar, está varrido o corredor, a maioria dos vidros estão intactos. Num deles a frase que me alimenta o vaguear criativo da mente “ help me I am still alive!”
Eu disparo as perguntas da mente fértil:
- “Que terá acontecido, achas que é piada esta frase? Isto é enorme! Linda a vista, porque estará assim? será de quem? O que achas? Vamos explorar mais, eu adorava saber, é fantástico, já viste?”
Pergunto mas não procuro as respostas, procuro o sentir, e mesmo que me respondam que pertence ao senhor Silva, de Maputo, e que é por razões de licenciamento da obra, ou por deslocação da família, ou por fraca exploração turística do país… que são estas as razões porque não funciona, eu não acredito. Para mim não é assim. Não pode ser.
Avanço ao primeiro andar.
Avanço a imaginar as estórias naquelas janelas, nas banheiras, no bar.
E viajo nas ruínas, no abandono da protecção de vida, que é uma casa.
Para mim casa é presenças e casa abandonada é sempre estória… procuro-a. E fantasio, sim.
Não sei se é o prazer de contar estórias que me vem do teatro, mas desconfio que seja o contrário. Mas na verdade é assim, não posso ver uma ruína sem viajar em possibilidades.
Sim, lembro-me.
E mesmo assim, como um lembrete que toca num celular, depois da memória eu lembro-me: aí ainda estávamos juntos. Pois era.
Juntos viajámos para o Xai-xai, anterior João Belo, como homenagem a um antigo administrador deste distrito na província de Gaza.
Estava contigo.
Chapinhei contigo nas lagoas e cheirámos juntos os frangipanis. Sabes, quando provei pela primeira vez anona foste tu que ma deste. Sim a vida é feita de conquistas. De perdas, de danos.
Não sei. Não é o meu sentimento que fala, nem é para ti que escrevo. Mas a memória existe. E se não esprememos nela a doçura com medo do contágio dos sabores amargos que possa trazer, então desperdiçamos possibilidades.
Na ruína do hotel viajei e nas traseiras encontrámos os guardiões. Lembras-te?
Dois homens sentados. Dois homens que pareciam dividir uma pequena divisão.
Estão sentados nas cadeiras meio destruídas que aqui em Moçambique, numa espécie de tradição, são entregues aos guardas, e partilham comida. Alimentam a minha fantasia sobre o lugar e às tuas perguntas dão poucas ou nenhumas respostas. Parece-me que sim, que falaram no senhor Silva de maputo. E mesmo assim eu viajo: mas aqui, o que terá acontecido aqui?
Estou na casa onde vivi um ano, na baixa da cidade, olho para o lado e ele ainda canta:
- Deixa-me, deixa-me esquecer-me de ti…

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Juntos mas não misturados


Vivo em Moçambique e trago comigo não só aquilo que sou, todos trazemos em nós o que poderemos ser.
Vivo aqui e alimento os dias de olhar. O olhar meio fora, muito dentro, de uma estrangeira em maputo. Alongo sobre isso as tardes e a escrita. Deslumbro-me com as questões da comunicação, da identidade, da origem da influência, do contágio.
A cidade é de personalidade excêntrica, mutável, quase esquizofrénica. É exótica como uma bailarina, picante como caril, fresca como Laurentina preta, bruta como diamante, calórica como um saco de castanha, doce como matortor, superficial como extensões de cabelo da china, contestatária como um revolucionário, guerreira como um makonde, suave como óleo de coco, pobre como um caniço, húmida como o suor de Dezembro, quente como o sol que laranja o entardecer e colorida... Colorida como uma capulana.
Viajo para o estrangeiro com actores moçambicanos e os colegas portugueses olham-me, e fazem-no de início com um esboçar de sorriso ainda meio a medo, ainda com dúvida se serei mesmo eu… e quando na hora do mata-bicho me apanham sozinha, do fundo, lá bem do fundo vem a questão:
- Como é que tu te dás assim loira no meio desses pretos todos?
Como posso responder?
Falo-lhe das crianças que me rodeiam gritando “mulungo!” nas escolas de Marracuene? Ou da minha mãe Ju? Da família dos meus amigos que é minha família, com direito a mãe, irmão, casa africana?
Sou convidada para me juntar a um grande grupo que almoça no Zambi, todos com relação forte com Moçambique, portugueses nascidos cá, alguns moçambicanos nascidos e vividos aqui, filhos de portugueses de Quelimane, de Chokwe... Alguns de visita, em viagem, em turismo, outros à procura de oportunidades de trabalho… grupo diversificado, divertido, conversa amena. Contam das saudades dos cheiros, da memória das cores, do prazer no reencontrar dos sabores. Contam da vida naqueles tempos, e já não sei bem como, noto apenas que a narração é feita sempre na positiva:
- Esses tempos é que eram! - eu falo meio a brincar, claro, não quero provocar e muito menos ofender, mas sorrio e continuo:
- Sim, para os brancos eram bons tempos!
Porque para mim a questão do colonialismo passou já há muito dos livros para as ruas e aí o neo-colonialismo que se sente presente no discurso de tantos portugueses a viver em África para mim passa a nódoa, e não resisto a responder aos olhos espantados da minha interlocutora:
- Sim eram bons tempos para os colonos, ou acha que para os escravizados também?
Sim, eu estou de patriotismo ferido. Aqui resisto ao padrão de vida que fazia em Portugal. Sim, podem dizer que sou freak e que vivo na Bagdad de maputo mas na verdade vivo aqui, e por prazer.
É segunda-feira e uma amiga portuguesa que vive e trabalha cá há um ano e tem plano de ficar 10 desabafa ao almoço:
- Sabes, o meu patrão é muito difícil.
- Ya, às vezes o meu também!
- Sim, o meu é… moçambicano, sabes?
- Ya… e então?
- Pois, e sabes como eles são… – eu perco a apetite:
- Não, não sei, como é que “eles” são? Sabes que isso do “eles” não existe!
Os expatriados, estrangeiros e outros migrantes fazem facilmente guetos, vivem em comunidades fechadas. E sim, isto acontece por todo o mundo, é normal, é compreensível, é natural. Mas não é por isso que vou a correr cumprir uma expectativa e responder a um lugar-comum. Como explicar? Para mim é aborrecido rodear-me sempre das mesmas pessoas, com os mesmos hábitos, a mesma fé. Maputo é tão diversa! É estimulante para mim a diferença e sinto bem cá dentro que isso de ser portuguesa não é coisa que venha definida na certidão de nascimento mas também que se gostar de xima não me faz moçambicana também não é por recusar bacalhau que deixo de ser lusa.
Tenho todo o respeito pela diferença de opiniões, acho saudável e até me alimento disso, mas também penso. E com mais ou menos cabelo, seja ele loiro ou carapinha, todos temos esse… como dizer? Potencial.
Vou sair, na night mais elitista de maputo parece que as pessoas convivem alegremente mas na verdade a surpresa vem de onde menos se espera, um português jovem, em maputo em projectos de intercâmbio comenta:
- Sabes aqui o que falta são mulheres bonitas! – eu não quero acreditar que é comentário sobre um país de paisagem humano como a de Moçambique! E juro para mim própria que ouvi mal!
- Como? C’mon, look around! Há falta de mulheres bonitas aqui?
- Claro que sim! Bom, a não ser que gostes de pretas!
Hoje fui jantar a casa de uns amigos que conheço de Portugal. De há muito tempo, da infância acho. No jantar tinham todos a mesma origem, e a conversa animou, e a certa altura surgiu o que foi para mim o slogan da noite:
- Eu costumo dizer que estamos juntos, mas não estamos misturados!
Falávamos da comunicação com as pessoas e do slogan que é usado nas despedidas e nos cumprimentos, no vulgar “estamos juntos”. Eu a falar do que significa… mas depois desta frase… bom, deixa lá o que significa! Não faz sentido explicar Moçambique, África não se explica, sente-se.
Vamos sair e no CFM a malta está junta, mas não misturada, na Rua d’ Arte a malta está junta, e até falo do sítio como um mixed placed… mas misturas? Todos as temos no sangue, mas parece que alguns aqui o ignoram.
E como a inspiração vem de todo o lado e as ideias andam por aí - de tal modo a voar que algumas são apanhadas para a vida das publicidades - então proponho esta a alguma das redes de telefonias móveis – a qualquer uma que eu cá não tomo partidos - este slogan pode vir com um “pacote empresas”, ou ser oferta com o tal DIRE de 1000 dólares:
“Telefonia móvel de Moçambique, para nós que estamos juntos, mas não estamos misturados!”

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Minuto africano


Hoje, dia 1 de Setembro de 2010 é lançado oficialmente o álbum de Afonso Dlhakama “o paish vai ardher”.
Eu abro uma lata de grão que tenho na dispensa, depois de viver em África há mais de três anos já esqueço a regra: ter sempre em casa comida para sobreviver um mês. Quando vivemos por algum tempo num país temos tendência para pensar que dominamos as coisas e dificilmente somos surpreendidos pelos acontecimentos, mas não é assim. Hoje não.
A empregada liga-me bem cedo:
- Senhora? Eu estou na portagem mas.. chapas estão voltar, senhora tem muito barulho eu… não consigo… nada… mas hei-de vire… - a chamada cai. Problema com transportes e comunicações neste país não é novidade, saio para a rua. Smssa um amigo que tenha cuidado com as rotas, “há confusão”, talvez seja do sono, mas eu não levo a coisa muito a sério.
É quarta-feira e eu vou trabalhar, no rés-do-chão o guarda abre a porta:
- Senhora está a ir aonde?
- Ao serviço.
- Ysh, senhora não vai! Hoje polícias estão a disparar, não ouviu? Volta, senhora.
Subo as escadas. Telefono para uma colega, confirma que “nem vale a pena!”
Toca o telefone:
- Duas crianças morreram com disparos da polícia, uma com uma bala no peito, outra na cabeça. Crianças da avenida de Moçambique!
Eu abro o computador.
Toca o celular:
- Joanna my dear you should stay inside today, the all city is crazy, fire everywhere, police! And most places are closed!
Eu acabo de mudar de casa, na rua onde vivia ainda ontem ouvem-se disparos de metralhadora.
Na marginal e na Coop foram começados vários incêndios e duas pessoas já morreram.
Ouvi muitas vezes na viagem que em África tudo muda num instante, que somos sempre estrangeiros e denunciados à primeira vista pela cor da pele, que em situações de conflitos a precipitação é comum, é fácil e até compreensível, que possamos ser alvo de actos precipitados. Aprendi durante a viagem que em África nos devemos afastar das zonas de tumultos, até de ajuntamentos. Manter-nos longe da polícia e esperar. Esperar que tudo acalme. Apenas isso.
É disparate temer a morte em momentos como este, todos sabemos que não se morre em situações perigosas - morre-se. Apenas. A menina que levou a bala na cabeça arriscou-se apenas a regressar da escola…
Às 15 horas sms de amiga Finlandesa:
- Friends of Zego killed at Chamanculo. Oh, Maputo!
As embaixadas avisam que é reacção à subida de preços de pão e chapa, aconselham a ficar em casa e esperar. As embaixadas?
Dizem-me que a uma francesa residente em maputo a embaixada já ligou duas vezes, a mim ninguém da diplomacia me ligou. Mas a mãe do melhor amigo em Maputo telefona, conta das notícias, pergunta das comidas, desaconselha das saídas.
A certa altura todo o bater de porta parece tiro e os risos das crianças na varanda soam a gritos.
Amigo que vive numa das zonas melhores da cidade manda sms:
- Smoke is gone, mas ainda há barricadas, está mais calmo mas à noite pode piorar, Mundo’s tá aberto.
Ainda ontem quando comprei pão pensei nisso, lembro-me que aconteceu coisa semelhante há dois anos e sabemos que sim, tudo pode mudar. Agora estou a arrumar a casa nova, mas na verdade não sei quando tudo ficará fora de sítio.
Está muito calor, pouca humidade no ar. Olho pela janela e vejo os guardas sentados na sombra das mangueiras, dos coqueiros, algumas pessoas passam a pé, sorriem, conversam.
É fácil adormecer numa tarde assim.
Ao longe ouvem-se sirenes, alguns disparos, ainda se vê fumo… dizem que os hotéis da baixa fecharam as portas, ninguém entra, ninguém sai, um homem é atacado no seu carro, tenta entrar no hotel, porta fechada – ninguém entra – ninguém sai.
São 16 horas, aqui ainda se ouvem tiros.
É fácil começar uma guerra numa tarde assim.
Dois polícias armados entram no prédio das traseiras. Calmamente, sem pressas. Na varanda ao lado uma mulher dobra roupa sentada no chão. O meu guarda do turno do dia não veio, o da noite já saiu. No prédio em frente uma mulher bonita sobe três andares com um bidon perfeitamente equilibrado na cabeça.
Morre-se do outro lado da cidade, e eu bebo chá de gengibre e penduro máscaras africanas na parede da minha casa nova. O mundo não é justo.
No mar consigo ver dois barcos tradicionais, de velas brancas, deslizam serenos, com o vento.
As empregadas do andar de baixo conversam banalidades.
Eu medito sobre a mudança. Desde que decidi sair do bairro central que o faço. Mudar é desmontar e construir, é sobre pertencer e ser livre. Medito.
Passa um homem a abanar despreocupadamente um plástico na mão. O guarda do prédio em frente vê as imagens de uma revista National Geografic.
Doem-me os pés. Escrevo sms aos amigos a perguntar como estão. Alguns não me respondem… mas na verdade a maior rede de comunicação móvel de Moçambique não funciona bem.
Recebo chamadas de Portugal, as notícias lá são… alarmistas talvez, a família está preocupada.
Estou sozinha, não saio.
Na acácia frente a minha janela apenas duas flores vermelham um dos ramos. A árvore está quase seca e em contraste a cor das flores parece ainda mais bonita.
Um rapazinho na varanda ao lado brinca com uma bola, olha-me surpreso. Sim, sou nova aqui,
Oiço Nina Simone no tema 4 Women. Oiço um tiro bem perto, corro à janela, o guarda da casa da frente sorri, não é nada. Sugestão apenas.
- Aqui estamos bem, senhora, essa é boa zona. - Não sei bem nestas alturas o que quer isto dizer mas tudo está calmo aqui.
Ouvem-se gritos, ao longe, oiço sirenes de polícia. Ou será ambulância? Nunca vi mais que uma ambulância no mesmo dia em Maputo...
Passa um homem embriagado a gritar mensagens apocalípticas. Duas crianças com pastas às costas riem. O guarda no rés-do-chão adormeceu.
O sol desce. Passam mais carros agora, devagar, como se fosse feriado. Escrevo à janela, o bafo de calor é forte, pesado.
Estamos no Ramadão, a mesquita canta. As famílias dos prédios vizinhos levam para dentro de casa as panelas cozinhadas na varanda, em fogão de carvão.
Amarro uma capulana à volta da cintura e subo ao terraço para ver a cidade com a luz dourada do pôr-do-sol. O trânsito na Av. 24 de Julho já está aberto, ouvem-se vozes ao longe, outra mesquita canta a Alah o misericordioso. Ao meu lado pousa um corvo preto e branco, a que aqui chamam corvo da índia. Olha-me, grasna.
Ligam-me os amigos de Portugal e de maputo os amigos portugueses, a colega finlandesa, a brada sul-africana, a amiga italiana… mas os moçambicanos? Com a excepção de um preocupado mais ninguém parece estranhar sequer. Pergunto como estão na zona e respondem com um  e um “beijos!” Não é estranho o dia.
E na verdade não deixa de me atravessar a mente várias vezes: hoje era um bom dia para namorar.
Em África tudo muda num minuto, ouvi muitas vezes dizer.
Assim mesmo, como se o minuto africano fosse mais rápido ou imprevisível que qualquer outro.

sábado, 28 de agosto de 2010

Morangos na Namaacha


Encontro-a na Namaacha, apresentam-nos:
- Olá. Eu estou aqui porque alguém me chamou, é isso eu faço, eu falo com as pessoas. Olho-as e vejo. E posso dizer-lhes coisas.
Oiço-a, tem na pele a cor misturada, quase laranja, de alguns sul-africanos, tem lábios bonitos, num constante esboço de sorriso, olha-me com olhos redondos, brilhantes, gelatinosos.
- Por exemplo tu. Tens um coração suave. Sorris com facilidade, entusiasmas-te com facilidade…
Sinto cada palavra como se não pudesse impedi-la de entrar assim pelos meus olhos, e é o meu corpo que responde. Como se cada coisa que diz acontecesse em mim.
- Mas também é fácil chorares, ficares profundamente triste… agora estás triste.
Sinto uma lágrima a rolar-me pelo rosto, fico quase surpreendida, afinal estou assim tão triste? Parece até que não sabia.
Na Namaacha encontro a vidente.
Visito a vila pequena, naquela pontinha de Moçambique que parece uma cauda de animal, espetada em terras vizinhas. Aqui é zona de fronteira, com Suazilândia, com África do Sul.
A primeira vez que me falaram da Namaacha disseram-me que tem morangos. Eu duvidei:
- Morangos aqui? Nada. Isso devem ser coisas inventadas pelos sul-africanos.
- É verdade! E temos também um licor.
Eu duvidei, e em visita a Portugal, acompanhada por um moçambicano, foi um português que me confirmou a estória.
Visito a cidade de Óbidos e entre as muralhas escolho Ginjinha da mais tradicional, mais para minha delícia que para interesse do turista, o visitante comenta:
- Isto é tipo licor feito de fruta, não é? É como os Morangos da Namaacha.
- Pois, pois, até me provares isso eu não acredito nos morangos da….
O dono da tasca castiça ouve a conversa:
- Disseram da Namaacha? Namaacha em África? Em Moçambique, ali perto de Lourenço Marques? Esse licor…
No olhar o tempo parado de quem desenterra uma memória.
- Vês? Não te disse que há? Agora que é um português a dizer já acreditas?
Falo baixinho por respeito:
- Eu não quero acreditar, quero provar!
Hoje visito a Namaacha e aqui somos recebidos pelo tio.
- Vamos buscar os morangos da Joana!
Saímos, no quintal está um pastor alemão que rouba de imediato o meu olhar. Corre para mim, salta, é tão parecido com o cão que tive já tive tão perto de mim que eu não quero acreditar, agarro-o no focinho e olho-o nos olhos… é igual. No olhar a doce timidez de quem é reconhecido… e para mim é ele. Olha-me meio espantado que o reconheça. Acho que choro mais uma lágrima.
Na Namaacha vejo a cobra na gaiola de ferro. Na Namaacha como o bolo de chocolate e kiwi.
Sou recebida na casa sem água, com um buraco no quintal, três cães no terreno, um gato, uma cobra e amigos. Na Namaacha conheço mais dos boisses tugas que abundam nesta terra.
Aqui visito as cascatas. Eu sou água. Aproximamo-nos do local da minha maneira preferida – seguindo os locais. Seguimos um grupo de jovens e crianças que carrega roupas na cabeça, falam connosco, e do que dizem pouco é português. Mas entendemo-nos, seguimos os seus passos. À minha frente vejo as montanhas, entre as montanhas as pedras polidas pela água, brilhantes ao sol. Entre as pedras largas passa água, pouco mais que riachos. Eu descalço-me e desço para as pedras, estão quentes. A água é turva e verde, fresca. As crianças descem também para as pedras, com as roupas para lavar, e avançam mais, e mais, e mais. Eu sigo-as, só mais à frente vemos o lugar onde a água se precipita, e lá em baixo a lagoa.
Estamos no lugar da água. Eu sinto-a.
Apetece. Apetece precipitar um salto. Um salto na água das cascatas, como os que nos vendem os romantizados filmes americanos.
Mitos. Em poucos lugares de África me foi possível mergulhar em águas doces. Aqui também não.
Na Namaacha vejo as relações dos homens e as ausências das mulheres. Os desencontros.
Visito as casas que ardem por dentro, sinto o cheiro enjoativo do fumo.
Vou às pequenas lojas que expõem tudo nas prateleiras arrumadas; lâmpadas “Europa”; balanças de pesos (como as que a tia Custódia usava na venda da Loureira); garrafas médias de cerveja. Leio no rótulo de cerveja moçambicana “Raiz”.
- Esta não conheço, levamos?
- Sabes, eu tenho medo dessa cerveja, melhor não!
Na Namaacha vejo as casas cheias de estórias abandonadas em ruínas, habitadas apenas por lixo, preservativos usados, garrafas vazias, colchões imundos… Nas escadas, cuidadosamente, alguém tratou plantas. Dois vasos de terra amanhada e hidratada. No meio do caos a vida parece surgir, eu tenho esperança.
Sobre África alimentamos muitos mitos, um deles é o do clima, que acreditamos sempre que é quente. Mas aqui, nesta África, o clima aqui é temperado. Na Namaacha ameaçam-nos com frio, e confirmam – o tempo dá para morangos.
Mas é só agora, quando finalmente visito a Namaacha e procuro o licor batendo ao portão de ferro da D. Graça, e só quando vejo que o portão está decorado com azulejos da Nazaré e do Ribatejo, e quando sei que acabou de chegar de Portugal… só aqui sei que afinal eu não tenho razão, estes morangos são… é disparate querer saber de onde são.
Namaacha é terra de lendas e eu já nem as conto, sinto-as.
E como nos amores precipitados, que da frescura dos primeiros frutos não conseguimos fazer nada… deste fruto não cheguei a provar o licor.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Não é doença, é feitiço


Estou em casa, está calor. O calor cheio de humidade que torna a respiração pesada, os movimentos lentos, a pele pegajosa, a boca sedenta. Estou deitada numa esteira no chão, perto da varanda, mas nem uma brisa se sente. O calor dá sonolência, não apetece nem levantar a cabeça.
Da sala vem o som dos tambores, na conexão à internet que deixei ligada corre o som da rainforest de um site turístico de Madagáscar, os sons misturam-se com os poemas de Vinicious na música brasileira que toca no leitor de CDS. A música aparece e desaparece em random misterioso, o tambor aumenta, os pássaros competem em composições surpreendentes, o vento parece mexer com as folhas das árvores.
Mas não é assim, não há nem uma brisa, repito, e neste apartamento na baixa da cidade não é comum que se oiçam pássaros.
Mesmo assim pelos olhos entreabertos parece quase que os vejo. Cores brilhantes, movimentos que arrastam os tons, que se misturam na presença brilhante das ondas de calor. Que também podem ser o reflexo da capulana colorida que serve de cortina… mas que apenas pode agitar-se com a brisa imaginada das praias de Itapoã no CD que continua sem parar.
Não consigo levantar-me. A Laurentina preta que bebi há algumas horas adormece-me ainda os lábios. Cheira a incenso de alecrim que queima às sextas-feiras na casa dos vizinhos de baixo. Vindos do corredor consigo ouvir os sons graves e ritmados do pilão a bater o enorme almofariz, esmagando farinha de milho ou amendoim. A chamada para a oração, da grande mesquita da baixa, uma das mais importantes da cidade, intensifica o exotismo da personalidade de Maputo. Eu estou deitada e o meu pensamento divaga. Parece que oiço meu nome, em vozes graves, bem próximo do meu ouvido. Perece tão real, mas o meu corpo não reage em conformidade. As quatro crianças da vizinha do lado correm e riem. Gritam: - Ei, pára com isso! Deixa a água suja aí pá! Vou-te bater eu!!
O tambor aumenta, parecem mais do que um, já misturo os sons dentro da cabeça e por momentos parece que não oiço nada, como se a cabeça estivesse em algodão, os sons muito abafados. Respiro com dificuldade, e parece que adormeço. Os sons continuam presentes, mas o corpo parece perder sensibilidade, mal o sinto. Volto-me sobre o ombro direito, o toque da pele na esteira é áspero, quase arranha.
Oiço a empregada a falar com alguém na porta, o tambor pára e de novo recomeça. Está calor. Apertada na entrada estreita da porta, passando a custo o seu corpo enorme entre o frigorífico e o espanta-espíritos que fiz com conchas e fitas de seda, ela avança. Oiço as conchas em choque, oiço o pau da chuva cair do seu equilíbrio precário na cesta de ráfia. Na entrada para a zona onde durmo - neste estúdio minúsculo que desconfio que não tenha sido feito para habitar não há muitas portas - tintilam as moedas do cinto de danças do ventre que está aí pendurado.
Parece que a minha casa é feita para cuidados, exige lentidões e olhos suaves nos cantos e nas esquinas, está cheia de dependurados e equilibristas que se despenham no solo ao menor descuido.
Descuidada ela avança. As missangas penduradas debaixo da máscara Makonde caem em três movimentos bruscos.
Eu estou deitada, está calor e quase não levanto a cabeça. Em toda a casa coloquei almofadões e esteiras no chão, há uma única cadeira, feita de sândalo, para mim bela, e decorativa. A vizinha ajeita suas volumosas formas na cadeira perfumada, olha-me:
- Então vizinha, soube que tá a sofrer de febres? Ysh, senhora, sabe que anda por aí coisas de mal, muitas pessoas com febres, minha prima também, depois nunca mais levantou. Mesmo aqui no prédio senhora de terceiro andar, conhece aquela clara que tem aquele marido monhê, sabe não é? Sim, então, mesmo ela teve febres, mas bebé dela, nasceu mês passado vizinha viu? Não apanhou. Mas aquele marido parece tem negócios de África do sul que não vão bem. Talvez ele pediu ajudas erradas, senhora conhece essas coisas, né? Sim, pois, então é isso talvez foi isso. Aceito um chá vizinha. – sem necessitar de uma palavra minha a empregada prepara chá - Mas eu estava muito preocupada, mesmo porque faz dois dias que nem lhe via sair! Vizinha assim podia avisar. Avisa! Porque eu estou aqui, posso ser sua mãe, sua família para lhe ajudar, né vizinha? Eu mesmo aqui na porta passava e estava preocupada, hoje vi chegar empregada então vim lhe ver.
Eu olho-a apenas, acho que tento sorrir. Tenho febre há três dias, ou serão quatro? Os medicamentos não parecem surtir qualquer efeito, a febre não baixa e tenho momentos que parece que quase deliro. Acho que D. Matilde, a vizinha do lado, nunca tinha entrado na minha casa, mas o à vontade com que o fez parece indicar que sim. Oiço o que ela diz, de vez em quando, entre os bates de tambor solta uns yée yée bem dispostos. Depois de falar toma o chá. Olha à sua volta, admirando com curiosidade as coisas nas paredes, nas prateleiras. Bebe o chá e sorri para mim.
- Bom, vizinha, eu já fui, obrigada pelo chá. Suas melhoras.
- Sim, obrigada pela visita, eu estou a tomar medicamentos, febre vai passar.
- Mas vizinha, medicamentos que disse? Assim comprimido mesmo? Vizinha não devia, está cá já alguns anos já devia saber isso aí não é doença vizinha – é feitiço.
E depois? Como posso dizer? Posso dizer que depois melhorei.
O que me move e me alimenta os dias aqui continua a ser o exotismo quente e os ritmos mornos dos dias. Por isso a febre no fundo não passou, para mim África é doce.
Pára o tambor, ele aparece no quarto:
– Ei, tem bom som hoje na rua d’arte, bazamos? – eu sorrio:
- Sabes, eu ainda me sinto um bocado mal.
- Mas ouviste a vizinha, não é doença isso, é feitiço! Tambores são terapêuticos sabes?
- Ya… sei.

sábado, 31 de julho de 2010

Bandeira órfã



É Sexta-feira, está calor e eu transpiro. No palco do teatro Matchedje eu transpiro. Sou estrangeira e pela minha cor as possibilidades de casting no meu trabalho como actriz em Moçambique são… limitadas. Mesmo assim eu estou em palco, interpreto uma portuguesa, branca, acabada de chegar a Maputo. Interpreto-me? E o desafio é maior do que esperava. Comunicar em palco é comunicar com uma cultura e quando ainda quase não a conhecemos é… feito às apalpadelas.
Começou assim: chego a Maputo e visito um teatro, assisto a ensaios, a peça estreia dentro de uma semana, e a meio da sessão o encenador explica:
- Bom, nesta cena a Filipa entra e diz…
- Como? – pergunto eu.
- Sim, entras por ali, depois do Ilísio e dizes…
- Mas… eu não posso. Quer dizer, vocês estreiam daqui a uma semana, e eu… - no fundo o que queria dizer é que não sei como fazer, que normalmente ensaio três meses ou quatro antes de estrear, mas dada a expectativa já criada em relação à tuga a verdade é que não tenho coragem de o dizer.
- Não importa. Tens tempo. Uma semana é muito tempo.
Estreia. Eu tremo como nunca tremi num palco, o espectáculo é baseado num guião com um tema, um alinhamento – ou devia dizer desalinhamento? – de cenas com texto fruto de construção colectiva e lançado em improvisações, onde o espaço para palavra tem de ser… conquistado. Literalmente aos gritos. E se a minha voz não se afirma o que acontece? Simples, não falo. Aqui não há protagonistas nem figurantes, tudo se conquista ou perde no palco e muda todos os dias, a cada representação. Entre marcações e improvisações eu tremo. Um mês de carreira de espectáculo, eu tremo. Dois meses, três meses… tremia. Agora já não. Já quase no final do espectáculo eu, na minha personagem de portuguesa, estudo uns dossiers, tomo umas notas. Neste teatro Matchedje, que agora pertence a uma companhia de teatro, funcionou em tempos a CineGest, da gestão dos cinemas de Moçambique. Para a cena usamos adereços que vivem perdidos na cave do teatro, entre humidades e poeiras. Abro um dossier e em páginas amarelas batidas à máquina com o logótipo do INSTITUTO NACIONAL DE CINEMA e com o rodapé “Evite a mensagem oral. Escreva-a” leio (que transcrevo exactamente como a leio):
MINISTÉRIO DA INFORMAÇÃO
MEMORANDUM Nº 263/ AC/ 79
DE: ADMINISTRAÇÃO DOS CINEMA
ENVIADO EM 10.09.79
ASSUNTO: PROVENIÊNCIA DA BANDEIRA PORTUGUESA
MENSAGEM:
1 – Segundo o depoimento do trabalhador Julião António Langa, 3º projeccionista do cinema África, a bandeira portuguesa que há pouco se fez entregue no I. N. C. pertencia às organizações Cesar Rodrigues. Ela era colocada no mastro lá existente sempre que fosse dias festivos e comemorativos coloniais, ou domingos.
2 - Com a proclamação da Independência de Moçambique, e da consequente tomada do poder pelo povo, o então proprietário da empresa acima indicada, mandou guardar a tal bandeira na cabine deste cinema. A mesma permaneceu naquele lugar até à data do seu afastamento das funções que desempenhava nos cinemas e da sua posterior expulsão de Moçambique.
3 – Em 1977, aquando da intervenção dos cinemas Infante, Manuel Rodrigues, e Gil Vicente, o grupo Dinamizador dos cinemas tentou resolver este assunto. Alguns dos seus membros eram da opinião que a referida bandeira devia ser entregue às estruturas competentes e superiores. Mas contudo, não houve resultados positivos, isto é, ninguém assumiu decisamente a tarefa.
Entretanto, não houve ninguém que tomasse a iniciativa de entrega-la à Administração dos Cinemas, já criada, nem de avisar o I.N.C. Mantiveram-se calados e deram pouca importância ao assunto.
4 – Entretanto, e, como é do conhecimento das estruturas do I.N.C. no cinema África existe um camarada de nome Ramiro. Este camarada é da defesa e pertence ao ministério da Defesa Nacional. Costuma passar revista á sala, principalmente quando se prever uma possível realização de sessão de gala. Assim, um dia, encontrou a referida e informado sobre a sua proveniência, foi da opinião que o responsável local do Cinema, a enviasse para esta Administração.
5 – Uma vez entregue à Administração, nós, achamos oportuno e justo fazê-la chegar às estruturas da Direcção. De salientar que a mesma foi-nos entregue em 3 de Setembro corrente e passados poucos dias mandamo-la ao I.N.C.
Sem outro assunto de momento, subscrevemo-nos
UNIDADE DE TRABALHO E VIGILANCIA
O RESPONSÁVEL
A portuguesa do espectáculo lê a mensagem, e é escusado dizer que se não fosse o registo de improvisação seria difícil manter qualquer personagem, esta cola-se na minha situação de estrangeira real e ficcionada – arranco a página e trago-a comigo.
Moçambique é nação jovem, moçambicanos são bem próximos dos portugueses, são familiares, são irmãos. E na proximidade de irmão há confiança para risos e festejos e também para desabafos e insultos. Não é raro ouvir declarações neo-colonialistas na cidade de maputo. Proferidas tanto por portugueses como por moçambicanos. E em discussões mais calorosas o orgulho patriótico salta, a jovem nação enche-se de afirmações de independências e refere os ultrajes de outrora, desmarcados da história no mudar de nome das ruas, das cidades. E visíveis na influência marcada no desenho da cidade, nos rostos e nos nomes das gentes… por todo o lado. E depois de ler esta mensagem escrita entre cinemas, que encontro num palco de teatro, questiono-me sobre a nação, a identidade, as revoluções, as libertações e… dentro de tudo isto parece que uma bandeira não é nada. Mas é, e nesta mensagem parece ser mesmo a bandeira que se lamenta da repentina orfandade, está deslocada, perdida. Porque uma bandeira só existe porque tem pais não é? Esta bandeira é de onde?
E a bandeira, qual é a minha?

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Reciclar as calamidades


- Senhora peço dinheiro para comprar calças para meu filho, aquele alto, rasgou calças, nem para sair na igreja, não tem.
- Mas… ok, quanto é para calças?
- Senhora, me dá 200. Ou então me dá 50 mesmo, hei-de comprar lá nas calamidades.
- Nas calamidades?
Hoje fiz – ou fui veículo - do maior gesto de reciclagem de que tomei consciência.
A reciclagem existe, todos sabemos, ela acontece – nada se perde, nada se ganha - tudo se transforma – nem que seja em lixo. Essa é a lei da natureza. Essa é a nossa lei.
Sim, estamos esquecidos, voltados de costas e por isso castigados, deserdados da mãe natureza. Mas ainda, como todos os outros seres, movimentamo-nos nela e respondemos a suas leis - não porque sejamos obedientes, mas porque está para lá do que podemos controlar.
Em Maputo os pontos de reciclagem de lixo ainda são novidade, mas o gesto existe. Existe desde sempre porque antes das nossas criações tudo o que existia respondia à tal lei e… transformava-se. Mas ainda hoje as pessoas construem casas com garrafas de plástico vazias, com sacos de areia… e… usam as nossas roupas.
Muitos de nós reciclamos, quando oferecemos algo que para nós não serve mas que alguém vai usar.
Quase todos nós, no hemisfério norte oferecemos roupas para África. Mais do que roupa usada é roupa que não usamos – quantos de nós acumulam em casa roupa que não usa? Coisas que nós mesmos escolhemos e comprámos - já para não falar da que nos é oferecida, ou da que aparece misteriosamente nas nossas casas e ninguém sabe de onde vem - quantos de nós de tempos a tempos põe parte dessa roupa em sacos e oferece? Oferecemos para África, para pessoas que vivem com mais necessidades que nós, para a puderem usar.
E só um pouco depois de chegar a África me apercebi da presença dessas roupas. Porque de início, entre as roupas tradicionais, presentes em muitas zonas do país, e as marcas sul-africanas, no sul de África muito populares, existem o que nós chamamos as roupas ocidentais, as tais que tanto desiludem os turistas em busca de exotismo.
Maputo é assim, uma cidade cheia de pessoas vestidas com roupas “ocidentais”. E olhando melhor para as roupas comecei a ver camisas da GAP, ténis NIKE, vestidos GUESS e pullovers Tommy Hilfiger, roupas de marcas, usadas.
Estas roupas estão por toda a parte, não só nas pessoas, nas crianças, nos estendais no quintal das casas, mas nos mercados, em grandes bancas – à venda!
Sim, numa banca de rua, entre capulanas coloridas está pendurado um vestido de noiva branco, de folhos, como os que usam na minha terra. Todos os dias passo por ele, é poética a visão parece a própria noiva, no altar, à espera, solitária.
E aqui parece tão deslocado. Está à venda, foi oferecido a África por altura de uma qualquer calamidade.
À venda? Mas então nós não oferecemos estas roupas? Sim, o presente é negócio e nos mercados de Moçambique podemos comprar por poucos meticais camisolas da Beneton e calças Diesel.
Hoje comprei roupa vintage (palavra chic para dizer segunda-mão) numa venda dentro de uma vivenda da Somershield – a zona mais fina da cidade, onde residem os embaixadores, as cooperações internacionais, os homens de negócios e as famílias abastadas, moçambicanas e estrangeiras. Enquanto observava os cabides conversava com Rassul - somali residente em Londres desde há dez anos, agora em maputo - e perguntava de onde vinham as roupas, tão diferentes visualmente, nas suas texturas, no seu corte, nas suas marcas. Ela respondeu-me que estas roupas são compradas aos vendedores de Xipamanine - um gigantesco mercado ao ar livre onde podemos comprar quase tudo, desde peças de carro a carne de vaca – que vendem em gigantescos sacos as roupas “das calamidades”. Essas, que nós oferecemos nas campanhas de sensibilização para África.
Eu vivo aqui, vivia antes no hemisfério norte, na Europa, e lá – muitas vezes como processo de limpeza de consciência, ou em educada solidariedade – ofereci muita roupa.
Ora eu, hoje, fui comprar roupas que um dia terei comprado, que terei oferecido para África, que terá sido por sua vez por África ou através dela vendido para África, que terá por sua vez sido comprado para venda no Xipamanine, de onde Rassul escolheu e comprou, de quem eu compro. E a mim já me parece demais! Quantas vezes terei eu de pagar por esta roupa? Meu consumismo não tem limite?
Ora quem faz estas vendas de coisas em segunda mão é quem tem olho para ver ali mais do que uma coisa fora de moda, que já foi comprada e usada por não sabemos quem, mas ver ali uma possibilidade. O que penso é se isto confirma ou desmente as minhas qualidades para as compras – comprei, ofereci, compro de novo? Tudo é cíclico e mutável, e o segredo está cá – em mim. Desengana-te que esteja nos outros.
E para aqueles a quem esta partilha fez questionar o valor das suas ofertas para África não pense assim, porque para muitos de nós, aqui, sejamos simples compradores do Xipamanine com a nota de 50 meticais na mão ou mais sofisticados e caros compradores da Somershield é assim, graças à calamidade que nos vestimos à africana – orgulhosamente bem!

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Crise não zanga


Em Portugal sonha-se com África.
Em Moçambique sonha-se com a Europa.
A Ásia sonha com a América… e todos vivemos sonhos intercontinentais.
O Homem foi feito assim, que podemos fazer? É da nossa natureza.
Não é. Se fosse a nossa natureza a falar, a nossa vontade de investigar lá fora, de sair do nosso canto seguro e certo ainda vivia em cada um. Em Portugal haveria actualmente mais aventureiros, mais pessoas com a coragem de viajar, mesmo que seja viajar no risco de um investimento ou no perseguir de um sonho. Viajar como um modo de vida, no sentir leve dos dias, na expectativa fresca dos encontros, na flexibilidade apaixonada de seguir uma ideia, um impulso, uma paixão.
Se fosse resposta à nossa natureza a nação de aventureiros, de poetas, de criadores, não estaria transformada em acomodados corpos, jovens, mas roídos de mentes bolorentas, receosas, banalizadas, tristes, fatalistas, cegas.
Visitei Portugal e lá não encontrei a tão famosa crise, sobre a qual lia nos jornais.
Encontrei casais jovens a viver em boas casas, com mais de dois quartos, a viajar em mais que um carro, a ver filmes importados no enorme plasma, a sair para férias no Brasil com final de ano marcado na neve, a oferecer às crianças Playstation e os últimos modelos de telefones.
Não tenho nada contra o dinheiro, nada contra as pessoas gostarem o que ganham no que lhes pode dar mais prazer, nem que isso – misteriosamente para mim - passe por acumulação de bens e ostentação de riqueza. Não censuro. Há muitos caminhos para a felicidade e a mim apenas me cabe perseguir o meu.
Mas o que me incomoda, o que me faz lamentar, pensar, escrever sobre isto, é o quanto é psicológica esta ideia da crise, da má situação financeira, da recessão. Não me interpretem mal, não digo que não haja famílias a viver mal, e cada vez pior, com dificuldades, com despesas, com dívidas… mas, não será pelas razões erradas? Quero dizer, não será verdade que há alguns anos atrás muito menos pessoas viviam com tantos bens? Não é psicológico? Não foi o conceito de estilo de vida considerado normal, acessível a todos, o que mudou?
Estou a viver fora mas mantenho sempre contacto com Portugal e desde há bastante tempo que os amigos me falam com pesar do fantasma “crise”. E com tom de sofrimento e lamento do destino – tom bem português por sinal – no estilo olhar cabisbaixo a dizer: «tu é que tens sorte de viver em Moçambique que não sabes como vão as coisas por aqui!».
Eu? Tenho sorte? Bom, sim, disso eu sei e já falei da minha estrela muitas vezes aqui, mas não foi a sorte que me trouxe a felicidade. Nem a mim nem a todas as pessoas que em Moçambique vivem com menos de um dólar por dia e sorriem; vendem tomate nas bancas e sorriem; todas as crianças que se vestem de andrajos, pedem esmola na rua, e sorriem; todos os mutilados de guerra que se movimentam em cadeiras de rodas improvisadas e sorriem; todas as famílias que vivem amontoadas nas casas feitas de caniço e sorriem. E, embora fosse Natal, eu visitei o meu país de origem e as pessoas não sorriem…
Na Europa para se aparecer na televisão numa peça sobre as dificuldades de vida na actual situação económica, basta ter uma infiltração no tecto da casa, ou baldes a aparar a água na cozinha. Não digo que não são situações difíceis, ou que não merecem a atenção das pessoas, do estado, dos governos, da união Europeia , mas para quem “tem a sorte” de viver em Moçambique essas peças são quase risíveis… e para quem vive aqui – embora existam muitas formas de viver eu falo agora dos que habitam neste país por paixão, por identificação, por empatia – falo dos que aqui, sentindo tão de perto a vida das pessoas que se relacionam de forma tão próxima com as nossas necessidades mais básicas se inspiram nelas e vêm que aqui não se fala em crise porque a ela estamos habituados. Porque não seguimos o sonho americano, não vivemos com o triplo do nosso vencimento conseguido em empréstimos e pago três vezes em juros e deixado para saldar no tempo de uma vida ou quem sabe algumas gerações.
Não critico o acesso ao lazer das viagens, ao conforto da casa, ao investimento num transporte seguro, familiar, ou desportivo, prazeiroso, nada disso. Mas não me falem por favor da crise.
A crise deixei de a procurar porque agora sinto bem onde está – nos olhos de quem olha baixo e no seu campo de visão cabe apenas o seu umbigo; nos ouvidos de quem numa notícia de catástrofe ouve mais alto o número de baixas de pessoas de nacionalidade portuguesa; na boca de quem sente defende a pureza da língua e a supremacia dos sabores lusos – a crise está aqui, dentro da nossa cabeça.
Sim, podem dizer que tenho a sorte de viver em África, mas a minha fortuna é a de querer ver mais do mundo e de com isso saber que a sorte está lá - onde a quisermos encontrar. Olhar para o globo, ver no mapa os buracos nos caminhos de África, a falta de cadeiras nas escolas, a ignorância nas questões da saúde, a instabilidade na segurança, a violência na liberdade de expressão e o desrespeito nos direitos humanos. Ver para lá do Mundial do futebol, dos safaris, dos animais selvagens, da pertinência dos países CPLP na divulgação da língua, dos números nos mortos por malária ou HIV, ver mais longe.
Olhar para o lado e ver. Ver as pessoas que apesar da muita crise sorriem.
E como se diz por aqui: Tuga, smila lá mano, não zanga!