sábado, 25 de dezembro de 2010

Pequena


- É pá… mas este espectáculo não sai, tantas coisas a acontecer… Ontem era porque cenário não estava, hoje problema com divulgação… temos de fazer alguma coisa… Ok, é hoje! Vamos fazer alguma coisa.
- Mas fazer o quê? Vamos ensaiar mais e tentar organizar melhor, né?
- Nada, Joana, não é isso que está a correr mal… achas que é o quê? Isso não é de nada, o espectáculo não sai, apenas isso! Precisamos fazer alguma coisa!
- Sim, mas o quê?
- Meninas, vamos para o hotel, vão lá comprar uma garrafa de vinho.
- Vinho?
- Ya, vinho Joana! Tragam lá e vamos resolver isto.
- Mas como é que o vinho vai resolver… eu não entendo.
- Tá branca essa! Não é para e entender, é para fazer! Vão lá.
Há itinerância de espectáculo com a companhia de teatro de Maputo com quem trabalho, e estamos em Pemba, láaaaaaaaaa – alongando o som como percorrendo a distância - no Norte.
Tudo aqui me lembra a Tanzânia, a pequena aldeia onde vivi. E sei que não era fácil de amar o dia-a-dia exigente de uma aldeia como Mikindani mas sinto uma saudade. De novo as paixões, a temperatura quente, o ar húmido, as cabanas de lama, as mangueiras… os embondeiros! Tinha saudades destas árvores monstro. Da maneira como ocupam a paisagem, da dimensão que tiram às coisas. Árvore que parece brincar com os tamanhos do que a rodeia. Tudo parece estranho, desajustado, cómico… parece que a sua presença denuncia um jogo, um cenário, uma falsidade… porque parece não pertencer a este mundo, parece feita de outra matéria… sim, tinha saudades.
Fotografo os embondeiros no regresso para o hotel, perco os olhos nos topos altos dos coqueiros, sorrio com a minha África.
- Joana como fotografa! Ysh! Aqui ela está bem! Gosta disto, esses sítios pequenos! Esse calor que não dá para fazer nada… Pá, joana fecha a janela, ar condicionado tá a sair assim! Deixa as fotos, é tudo igual, são árvores só.
Eu vingo-me dos dias na cidade e viajo…
Os mundos sobrepõem-se, em viagem. Como missangas dentro de um frasco de vidro, missangas ordenadas por camadas de cores, umas sobre as outras. Ordenadas.
Viajo e acumulo missangas, e a memória surge como a mão que agita o frasco, nenhuma cor combina já, todas se tocam e mesmo sem mudarem de cor respondem aos reflexos das que estão próximas.
E só mais tarde, só nos momentos mais avançados da viagem sou surpreendida por estas memórias misturadas, as que surgem dos cheiros e dos sabores, as que me apanham desprevenida na moleza das tardes quentes, as que me fazem escrever…
Pemba é uma vila pequena frente a uma baía de Índico. Perfeito. O cenário é perfeito.
No domingo passeamos pela praia e parece que toda a gente o faz. Bebe-se cerveja fresca nos bares na praia, come-se marisco grande nas esplanadas. Eu viajo.
E agora, enquando o mar morno me amacia os pés, faço das missangas colares.
Faço e desfaço fios de contas. Volto a fazer.
Não, não tenho vergonha de viajar, de aproveitar todos os momentos de trabalho para fingir que estou de férias
- Bom dia, estrangeira! Mata-bicho já tomou?
- Nada, eu acordei cedo para caminhar na maré mais baixa, mas estou a vir agora mesmo, venho pela areia.
- Ooooh, turista, estamos à tua espera para o ensaio daqui a 30 minutos!
- Sim, vou só passar no pontão.
- Ei, menina da praia, estás a mudar de cor, vamos jantar?
- Peçam para mim, eu vou dar um mergulho aqui mesmo em frente.
Caminho na areia. Ele aproxima-se, os olhos brancos.
Ele aproxima-se, o passo certo de um pé descalço.
Ele aproxima-se:
- Habari za leo?
- Mzuri, mzuri sana. Habari za wewe?
Cumprimento swahili, que se fala por aqui, toca-me na fraqueza e lembro-me das noites misteriosas de Mikindani, onde de noite eu esperava...
Sentamo-nos para jantar e o empregado demora, o pedido tarda, a comida atrasa… e eu lembrada da indolência doce das tardes naquela aldeia aqui tão perto… dou mais um mergulho.
- É estrangeira mesmo, nós ainda nem fomos à água! Ela já tomou mil banhos, ya... brancos? É outra coisa.
A espera é isso, este estar quieto, dentro do tempo que não seu usa. Esperamos o jantar e com isso esperamos alguma coisa mais, e eu fico mais atenta ao que acontece nesse desacontecer. E gosto de o viver assim, no limbo escorregadio do que ainda não chegou.
As mangas crescem no ramo, espero que amadureçam, uma manga madura ao acordar é uma das minhas doçuras preferidas de Dezembro…
Sim, gosto de viver aqui, e todos os dias sinto que nasci cá, e todos os dias sinto que acabei de chegar.
Mantém-se o verão, mantém-se a paixão. E alertam-me os amigos para o perigo deste meu gostar de tudo, deste meu prazer no “desconseguir”, no “confusionar”, no “enjoyar”…
Sim, já sinto os perigos, eu sou nómada… e nesta paixão o “sentir falta” começa a atrapalhar… sim, agora atrapalha-me.
O amor é sedentário, a paixão é nómada. Eu vivo a paixão e sonho com viagens, planeio os caminhos do próximo ano em resoluções de ano novo que prometem liberdades. Mas… se esta minha paixão se transforma… passional, exclusiva, possessiva… se me surge mesmo um amor? Por um continente, por um clima, por um homem… pela expressão e pela descontracção de um povo tão… apaixonante.
Por agora não sei, corro os riscos e escrevo para o Índico. Que a brisa adocicada e quente das monções daqueles com quem partilhamos margens, da índia, faça comigo os fios das memórias.
Compro o vinho e regresso para o hotel, depois do jantar reunimo-nos no jardim.
- Ok, venham todos, vamos, vocês venham para resolvermos isto.
- Papá? Papá onde está? Onde está mais velho? Aaaaah, papá, vem lá! Joana, pequenina, chama lá Samuel e vem pá.
- Mas…?
- Não pergunta e traz o vinho. Não abras! Pai abre.
- Ok, pois, eu abro e vocês aprendam! – ele abre a garrafa, eu aproximo os copos -
- Não precisa copos. - Acocora-se no chão e delicadamente deita um fio de vinho na terra, fala com o português e o xangana misturados – quero pedir licença para fazermos nosso espectáculo aqui, nesta que também é a nossa terra… - eu acho que é uma brincadeira e rio.
- Joana pá!
- …Sorry lá….
- Peço protecção e desculpa por não estarmos a estrear lá na nossa casa Maputo - toca a terra com a mão, e continua a falar este pedido rezado - Sabemos que casa é lá, e nosso coração está lá, iremos levar nosso trabalho para famílias e irmãos, mas pedimos esta excepção para começar aqui… - ele levanta-se e olha para mim.
- Pois, vocês não comunicam com antepassados e depois estranham! Nada, as coisas não funcionam se não falamos com eles, agora tudo vai correr bem. Os copos?
- Mas… pode-se beber?
- Sim, é vinho isso minha filha! Para “paxar” antepassado é o primeiro a beber, agora já podemos partilhar todos.
Brindo com esta minha família, é natal agora, e para mim é tempo que sabe sempre a saudade, os brindes sabem a memórias cheias de cheiros, e a paisagem são as formas encolhidas do frio da serra, lá, do lugar onde eu nasci. Aqui não há serras nem frios, caminho para o embondeiro e peço fotografias, apenas para me sentir de novo assim. Pequena.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Verão moçambicano


Está calor. Tenho no corpo a sensação infantil das férias.
Para mim verão é isso, é expectativa. Dá-me uma dormência respirada, o bafo de calor. O suor que pinga sempre leva-me a banhos que me lembram as piscinas da infância. E mesmo que trabalhe todo o dia, nos mais pequenos intervalos vou lá para fora, e respiro as promessas que o calor traz no ar.
Para mim no verão todas as noites são… novas, apetece estrear cada anoitecer com uma bebida que veja o pôr-do-sol vermelho que só o ferro de África nos dá.
É Verão, nas últimas semanas as chuvas vêm de noite e quando os trovões zangam o céu não resisto aos banhos da água que cai precipitadamente quente… a cidade fica alagada e ganha correntes… dizem-me os amigos que aqui nas terras dos feitiços os rios podem ser pessoas e as pessoas podem ser rios… dizem que o Rovuma é capaz de fazer assim mesmo, descer da distante fronteira do norte e na cidade fazer-se respeitar.
Chove e tudo fica… pronto para… acontecer.
Verão é paixão. Para mim é.
Verão moçambicano é assim, tem misturado nas temperaturas as tradições e as estórias da terra e da água. Nas pessoas o toque liso da pele com o tempero acre-doce do suor.
Moçambicano é paixão e indiferença. Grito e segredo. Carinho e agressão. Elogio e ofensa. Moçambicano no amor é gingão, é quente, é confiante, é...
Moçambicano é tradição de poligamia e importação de monogamia.
Moçambicano é frieza da formalidade de manhã e escorregadio calor húmido de tarde.
Moçambicano controla:
- Tás aonde?
- Ei, telefonas para saber onde estou? Vocês como gostam de perguntar onde estão pessoas!
- Ya, GPS aqui, quero fazer busca e captura.
Moçambicano é gourmet:
- Eu final de semana não como comida da empregada! Nada, aí esposa que cozinha!
Moçambicano não tem segredos:
- Não, eu confio em ti, sou teu, eu! Tu és minha. Vamos lá trocar de celular 24 horas, aceitas?
Moçambicano joga:
- Ya, tu és independente e tal... estamos bem nós, já és quase minha mulher, agora eu vou-te dar as balizas!
Moçambicano educa:
- Mas temos de ter valores.
- Quais?
- Ai é? Então como vais educar um filho?
- Ele vai aprender seus valores…
- Sozinho? Nada! Quando tivermos filho logo que ele desmame fica comigo! Quero ver depois tua independência, vais me ligar TO-DOS os dias!
Moçambicano trabalha em equipa:
- Alô, tás zangada, eu sei, vou te passar meu “advogado”.
- Sabes joana, é bom saberes que… tem contextos específicos… é bom ver que homem africano tem as suas… características, tu já estás aqui há algum tempo e por isso podes entender essas coisas… não é? Já não és da Europa, podes mesmo ser mais tolerante e compreensiva também porque nem todas as pessoas tem a mesma… maturidade, e homem africano nalguns assuntos tem dificuldade em ser ele a avançar, e talvez pudesses ser tu a avançar e a criar as condições necessárias para ele falar contigo e abrir o jogo.
Moçambicano é do mundo:
- Nós não podemos ser namorados. Não a viver aqui! Sim, aqui não íamos nos respeitar, só noutro país… Sim, tinha de ser noutro país. Aqui em Maputo?? Nada, se perde respeito aqui!
Moçambicano é pai:
- Depois eu vou te encher barriga e aí quero ver quem é que vai tchilar até às cinco da manhã na Rua d’Arte até ficar sem voz! Vou ser eu!
Moçambicano tem medo:
- Parabéns pela cerimónia, e… felicidades não é?
- O quê?
- Ya, mais um a deixar o nosso clube…
- Ei, nada! Isto não é nada! Eu sou solteiro na mesma, casar não é de nada, sou solteiro eu! Sol-tei-ri-ssi-mo!
Moçambicano cumpre:
- Homem que é ciumento não é competente!
Moçambicano declara:
- Alô? Eu estou com os copos e o meu coração ainda é teu.
Moçambicano descrimina:
- Ei, eu não gosto de mecha, extensão, não sei quê! Eu gosto de cabelo natural.
- No outro dia, quer dizer – reformula - há um ano, aquelas… essas meninas daqui que mandam sms “papai…” depois chamam essas nomes “papa, pai” e pedem “tou pidir crédito...” Sou banco eu?!
Moçambicano procura:
- Ontem não te encontrei na night.
- Querias? Porque não me ligaste?
- Nada, queria te ENCONTRAR, chegar assim de surpresa e fazer "cheguei".
Moçambicano ameaça:
- TU vais te apaixonar por mim! Eu sou teu homem diz lá! Diz! Ah tas a mentir! Diz com sentimento! Anda lá admitir, tens tanto problema em assumir porque, pah! Orgulhosa. Anda lá, acabaram as eleições, ganhaste.
Moçambicano explica:
- Ya, sabes… desculpa a cena do outro dia mas… ela é muito ciumenta… tu mandaste sms né? Eu estava no banho, ela apanhou e viu, então eu liguei-te só para ela ver uma coisa! Entendes? Desculpa lá, não deu para evitar o desequilíbrio e a ciumeira… Por isso é que a relação tá no fim, não dá pah…
Moçambicano é fiel:
- Ysh! – bate-lhe nas costas - irmão, salvei tua pele, ligou tua dama, ligou aqui, quando estavas lá dentro, eu falei, “neguinho está aqui comigo, só foi no banheiro”.
Está calor.
Privo com moçambicanos que por uns momentos esquecem que sou estrangeira, branca, mulher. Sim, agora e aqui, nesta noite, depois de mais de três copos de Laurentina preta tudo se fala… porque eu não sou a legítima, a mãe dos filhos, a que vive lá em casa.
Estou na esplanada com mais de 10 homens, entre moçambicanos formados no Brasil, jornalistas e desportistas, estrelas de televisão, fotógrafos e frelimistas. A conversa faz-se pelas mesas, sem limites de conhecimentos ou formalidades de contextos, e entre o comentário ao jogo de futebol que passa no ecrã gigante e a conversa sobre as mulheres tudo entra no mesmo ritmo, na mesma efusiva alegria de quem vê um golo.
Na despedida comenta o sul-africano:
- My friend, your wife is beautiful.
- Hey, I am not is wife! C’mon if i was his wife I would not be here!
- Yes, she would be at home…
- Sleeping…
- Ya, a dormir…
- Ya, a mandar mensagens.
- A telefonar… - toca o celular, ele aclara a voz, levanta-se, compõe a camisa – Olá, como estás?
– “Como estás?” Aaaaahhhh é esposa essa!
Está calor, há muita humidade no ar. Agora não chove.
No rádio toca “ela cozinha muito bem, eu é que não como em casa…. Ela me espera tooooooooooda noite, só chego de madrugaaaada…” – ele levanta-se:
- Gramo dessa música, anda cá! Dá lá uma passada comigo!
Dançamos, a camisa dele cola-se ao meu vestido e os suores misturam-se.
Verão é paixão. Para mim é.