quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A minha sogra é feiticeira


Sim, eu sei que parece citação daquele filme não muito bom, mas na verdade a estória é assim, também não é muito boa.
Começo “pela cena da morte”, como se diz por aqui: uma portuguesa que casa com um moçambicano, o casamento revela-se problemático, ela acusa a sogra (não é a mãe de sangue do marido mas, graças aos contágios e convivências da família alargada africana, é, para todos os efeitos, a sogra dela) de ser feiticeira.
Sim, eu sei que é estranho, e para contar a estória nem sei bem por onde começar… ora bem… para facilitar as coisas refiro-me daqui em diante à personagem como “menina tuga”.
Menina tuga vem da tuga com namorado moçambicano que conheceu lá, e queixa que ele aqui age diferente: que gosta de sair; que aprecia dama que passa; que bebe; que desaparece na 6ª e regressa no domingo; que viaja com bradas; que apronta! Ela tenta controlar! Sim, ela tenta. Que ele discute; que ele lhe bate… que família é consultada para tudo; que marido passa o tempo lá, na casa da “mãe”; que essa mãe não é mãe, é tia! Que não sabe porque chama mãe!
Ela que não entende. Que avó de menina sua filha quer cuidar dela, quer levar para o brai na matola, quer deixar a brincar com os meninos do vizinho - com os negros, com os mulatos, com os canecos, com os monhés. Que menina não pode sentar assim - no chão; comer assim - com a mão; roer manga verde e beber água de coco directamente de dentro da casca! Que não pode andar sem roupa; pisar descalça a terra e comer a areia vermelha. Que aqui se come “à preto”; se houve música “de preto”; que “os pretos” não aprendem, não entendem, não… são como ela.
Ela, “a menina tuga”, aprende a fazer caril de amendoim para o damo, lava a roupa do damo, pinta a casa onde vive com damo, baba-lhe bem! Ela só lhe quer a ele, ele zanga. Ela não entende!
Ela desiste, chora noivado e cancela casamento; devolve vestido e desmarca copo d’ água - regressa para a tuga. Mas mesmo lá não entende… e então ela vai a um… desses que lêm as sortes. Um dos que corrige defeito e cura desgosto, dá fogo a quem não tem e diminui os que ardem demais. Um adivinho do Congo – ele diagnostica: “mãe dele é feiticeira!”. Ela regressa a maputo e consulta adivinho nacional, ele confirma: “sim, é feiticeira”. Afirmam e confirmam, como pode ser mentira? Ela diz à família, ela informa, como quem denuncia vício ou crime. A família… reage.
Menina tuga não entende, mas a mim faz-me no fundo sorrir. Repito que África é lugar de calores, de humidades, de energias… e de… feitiços, sim. Assim crêem os que nascem nesta terra; isto criticam os que, nascidos aqui, se dizem desenvolvidos, formados, viajados (mas que muitas vezes vão ao curandeiro na mesma mas o escondem gerando as inevitáveis esquizofrenias sociais); isto condenavam os colonos e os (ainda resistentes) neo-colonialistas e, os restantes… arrisco-me a dizer que, disto, desconfiam… e alguns não dizem que não, não dizem que sim, mas… respeitam as fés, as tradições, os hábitos locais.
Sim, há as estórias das pessoas que são “engarrafadas”; homem pela mulher para lhe ser fiel; casado pela amante casa 2, para que passe a casa 1; rapaz pela mãe para que não se case; menina pela avó para…
- Eu agora quero ter bebé. Mas não consigo fazer barriga pah… só posso ir perguntar minha avó, quem sabe me engarrafou!
- ??
- Sim! Uma minha amiga a avó dela lhe pôs a primeira menstruação numa garrafinha e enterrou num place, ela não engravidava, a cota não gostava de homem dela! Quando avó decidiu foi lá, desenterrou garrafa, abriu, minha amiga engravidou!
Há estes feitiços de dependência e os ataques de criminosa vingança:
- Sabes que a mãe dela foi morta?
- Morta? Como assim?
- Ela é jovem, como morreu assim?! Ela estava de férias em Zavala, lá fazem essas coisas! Acho que se envolveu com homem errado ela, coitada…
- Mas… não entendo.
- Dizem que morreu com ataque cardíaco? C’mon! Pedimos autópsia, encontraram aquela cena, eu tinha a certeza!
- Que cena?
- Cérebro de crocodilo, não conheces?
- Não…
- Cérebro de crocodilo esmagado até ficar em pó, é veneno aquilo! Tu pões na bebida ou na comida, não tem cheiro nem sabor, tu morres! Parece ataque cardíaco, NA-da! Foi assassinada! Mulheres de lá fazem muito isso! Nem vale a pena ires lá, basta ser de fora de Zavala que elas ficam de olho, imagina tu, estrangeira, pior mulunga! Nada, se vais lá não aceites comida nem bebida! Mesmo em Inhambane, é terra de feiticeiros ali, eu mesmo quando era criança mãe sempre me dizia para não aceitar nada! Nem doce!
Sim, há muitas coisa… há os curandeiros, os nhamussoro, os adivinhos, os médicos tradicionias… os que são escolhidos pelas águas, os que comunicam com os antepassados, os que lêem nos ossos as sortes, os que sabem das ervas, os que prescrevem rezas, banhos e danças…
E para mim… enfim, tudo se baralha um pouco, mas feiticeiro parece que não é coisa boa…
Eu estou em casa da minha família africana e passa em rodapé na televisão: “família mata parente por suspeita de feitiçaria”. Eu engulo em seco… pois, não é coisa boa, e talvez menina tuga nem saiba o que significa AQUI, isso que ela repete por aí.
Sim eu acredito que há pessoas, adivinhos ou não, que conseguem ver, sim, ver coisas. E ver não só o que nós somos mas o que nós desejamos… porque a energia existe, e manifesta-se em tudo, de muitas maneiras, responde aos nossos medos e também aos desejos. Sim, acredito, e respeito até, mas… acho que não, acho que o que o adivinho do Congo (das terras longínquas e por isso sempre mais exóticas); e o adivinho daqui (mesmo que seja acabado de chegar de Nampula, e o publicite como espécie de garantia de que a recarga energética é bem feita lá no mato, longe das más energias dos fumos e das máquinas das cidades) ambos confirmam não é verdade. Eu acho que se enganam. Porque no final a questão é que… esta… é também a minha sogra! Não é mesmo sogra, mas repito que as práticas de família alargada africana têm destas coisas, e para todos os efeitos mãe do meu ex-namorado é minha mãe, é minha família, é minha sogra. E uma coisa é a menina chamar feiticeira a sua sogra, agora à minha?! NÃO GOSTEI!

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A culpa foi do canhú


Batem à porta, ele tem um sorriso nos lábios e uma garrafa com um líquido espesso e amarelado na mão:
- Olá! Trouxe canhú para ti.
- ? É o quê?
- Não conheces? Prova, este é doce, é sumo, podes beber à vontade! Mas acaba! Não deixes nada na garrafa!
- Porquê?
- Isso fermenta e fica… perigoso!
- Mas porquê?... quero provar, vou deixar fermentar um pouco.
- Ysh!... ok… tu que sabes…
É 4ª feira e eu vou para o CFM:
- Foi eleita a mais bonita de África – Esta estação conheço-a mais pelas noites longas no bar kampfumo bistro que pelos caminhos-de-ferro, mas garantiram-me que funcionam, que os comboios saem mesmo daqui. Linhas para Marracuene, para Chokwe, para Boane.
Eu avanço para experimentar, entro num comboio feitos de bancos de pau:
- Vestida de capulana! Uau! Que nice, vais ao festival das capulanas mesmo!
Sim, capulana também é coisa desdenhada pela classe média maputense, mas tão apreciada pelos mais tradicionais e pelos mais… artísticos, obviamente homenageada pelos mais… estrangeiros. Como eu.
A viagem para Marracuene custa 5 meticais. As carruagens estão meio destruídas, os bancos são de pau, mas o comboio é bonito… eu gosto de comboios. Sim, hoje pus capulana e vou a Marracuene, ao Gwazamuthini, ao festival da Marrabenta, à festa do canhú. A viagem de comboio é mahala, está por conta do festival da ruidosa “arrebenta!”- música tradicional do sul de Moçambique.
A época do canhú é especial e preciosa, envolta em estórias, mitos e mistérios. É merecedora de cerimónias de exaltação dos antepassados; de preces dos fazedores de chuva; de homenagens à fertilidade da terra, das mulheres e dos homens; de pedidos de bênção de comida. Todos os anos, em vários pontos das províncias de Maputo e Gaza – e um pouco em Inhambane – as pessoas deslocam-se para perto da árvore do canhú, para perto das mulheres que dos seus frutos tiram os sumos… míticos.
O evento é dirigido por régulo e dura até ao anoitecer, envolve representantes do Conselho Municipal e do Governo da Provincial, gera emoções e reconhecimentos, promessas de antepassados e respostas a pedidos – os povos pedem chuva.
E em Marracuene tudo se mistura. Eu estou no comboio que segue para lá, aproximadamente 30 km a Norte de Maputo. Lá o canhú mistura-se com as celebrações de Gwazamuthini, para alguns tudo se resume a uma bebedeira de ukanyi, mas as primeiras horas a cerimónia é de evocação e exaltação dos espíritos dos guerreiros, com o tradicional “kupalha”. A festa prolonga-se por todo o dia 3 de Fevereiro, o feriado dos Heróis Nacionais.
No caminho fala-se canhú. Esse é o tema: o mais fresco, o mais puro, o mais tradicional, o mais fermentado… Provamos com paladar gourmet e partilhamos com amor fraternal. É líquido precioso, disso não há dúvida.
O comboio chega, da estação vê-se o recinto cheio de gente:
- Vamos! Hoje é noite de amor livre!
Aqui compra-se a bebida que tradicionalmente não se pode vender, bebe-se o líquido que criança não pode ver.
E nestes dias, nos dias do festival do canhú, não importam os compromissos, os casamentos ou os noivados, aqui vale tudo, debaixo da lua e das estrelas, tudo vale.
Dança-se e fazem-se as cerimónias das chuvas. Homenageiam-se guerreiros, as vitórias sobre os colonos, celebram-se os feitos heróicos dos moçambicanos e partilha-se a carne sagrada.
Tradicionalmente um hipopótamo é caçado nas águas do rio Incomati e a sua carne é comida por todos. Mas nos últimos anos do rio já não avança o animal que, dizem os mais velhos, “se entregava em sacrifico, sem luta”, não sabemos porquê mas “as águas do rio recebem muita água salgada”, dizem uns; “as tradições não são respeitadas e os espíritos não estão contentes” dizem outros. Não, eu não vejo hipopótamos. Numa das esplanadas montadas à minha frente uma cabeça de vaca fumega na grelha.
Por todo o lado garrafas de canhú, e continua a discutir-se a sua pureza, o seu grau de fermentação. O sumo é feito do espremer do fruto do canhoeiro, ou árvore de marula, como é conhecido na África do sul. Garantem que sumo é sumo, não tem álcool, mas também se sabe das bebedeiras que apanham os macacos e os elefantes – grandes apreciadores deste fruto.
Porque o álcool é feito… pelo tempo, pelo calor:

- Bebe! Basta deixar aí o sumo no copo e logo fermenta… e alcooliza.

Eu estou sentada, bebo, e já não me apetece levantar daqui…

- Eh! Eh! Olha para ela, olha o canhú a fazer efeito!

- Mas… eu estou a beber sumo!
- Mas ele fermenta, mesmo no teu estômago fermenta.
- Nem sinto as pernas…
- Pois!
- Apetece só ficar, dormir…
- Tá a ver?! Ah! Ah! Canhú não falha! E cuidado que vem aí outros efeitos!
- Que efeitos?
- Ela não sabe? Vai saber!

O canhú é tradicionalmente feito pelas mulheres. Mas aqui, “nas comunidades” elas não o bebem junto dos homens:

- Nas festas de canhú as casas de banho dos homens e das mulheres têm que ser separadas, bem bem! Senão nunca vagam! Ah! Ah! Ah!

Tradicionalmente é bebida de relações delicadas: aproxima sogra e genro - é ela que prepara e lhe oferece a primeira garrafa; aproxima mãe e filha - no dia seguinte à festa elas partilham as misteriosas intimidades dessa noite.

- Sei uma estória de uma violação em plena cerimónia de canhú, mas nem se considera crime! É caso que nem vai a tribunal isso aí!
- Os rituais de canhú são exaltados por cenas de adultério que nunca serão julgadas por ninguém, por motivos aparentemente óbvios.
- A esposa do Régulo trata o canhú com muito carinho, mas sabe como a bebida o vai conduzir para os caminhos da infracção do código conjugal.

- Mas todo o mundo releva, pessoas não têm culpa, basta apenas se for apanhado dizer: “mas amor, a culpa foi do canhú!”
- Pois bem, este meu desejo de provar esta bebida está a tornar-se uma obsessão e posso jurar XICUEMBO XANHACA que não é por alegadamente ser um poderoso afrodisíaco capaz de envergonhar o Viagra!
Eu regresso de Marracuene, entro na cozinha e ainda está a garrafa de canhú que esqueci na prateleira:
- Olha, ainda temos… - PUM! A rolha salta como numa garrafa de champanhe!
- Eh pah, é mulunga mesmo, eu disse-te, bomba explodiu! É perigosooooooooooooo… anda cá!
Porque o canhú… é afrodisíaco.