sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Mozambique no fake


Em Moçambique vive no mesmo coração a desconfiança e o orgulho do que é nacional, e nesse conflito o lugar é de personalidade forte. Forte na miscelânea; de línguas, de vozes, de contextos. Sim, é espantoso o contraste entre a que carrega às costas o bebé e vende amendoim torrado na rua e o que sai do Jaguar em fato Armani e sapatos Ferragamo importados. Maputo é… difícil de explicar e forte no sentir e é na procura desta expressão que transcrevo, sem edição, a carta online de um amigo de Maputo.
RASCUNHO DE UMA CARTA ABERTA A UM DJELAS QUALQUER…
Hey, you… Este texto é para ti mesmo, djon! Tu que me tens estereotipado e catalogado em função do que tu presumes ser que eu seja. Eu vou te ajudar a entender-me:
Modéstia a parte, eu sou um dos gajos mais influentes do Facebook nacional, heheheheheheheheheh… Da mesma forma que venho teclando contigo, faço o mesmo com tipos como o Basílio Muhate, Dino Foi, Quitéria Guirrengane, Erik Charas, Eduardo Namburete ou Filipe Vieira (jornalista de um mass-media internacional). Teclo com estudantes universitários, actores de teatro, donzelas, académicos vários, empresários, frustrados, europeus, deputados, congoleses, desempregados, batedores de carros, brasileiros, escritores, prostitutas, vendedores ambulantes, playboys, cientistas, assaltantes a mão armada, donas de casa, brancos, músicos, etc… Tipos com potencial para perpetuar ou para mudar a merda do país em que vivemos ou o seu espaço físico (Europa, Ásia, América, Xipamanine, Sommerschield, UEM, barracas, igrejas, tabacarias, chapas e sei lá mais o quê…);
Eu vim dos subúrbios mesmo. Daqueles becos sujos e lamacentos da Mafalala, onde já dormi literalmente em cima de charcos de água estagnada. Vivi dois anos em Quelimane numa palhota coberta de folhas de coqueiro e com paredes de areia maticada, dormindo em esteira que não conseguia ficar impermeável à humidade daquele chão do bairro de Santágua… Já comi peixinhos secos, quase invisíveis, assados em fogo de lenha, em água e sal com xima amarela durante grande parte da minha infância. Não tenho berço mesmo, como uma vez disse uma Patrícia de 40 anos de idade aqui mesmo no Facebook, a meu respeito.
Nunca precisei (nem preciso) de cunhas, nome de família, escovismo servil ou seja lá o que for para triunfar na vida. Mesmo com todas as adversidades com as quais convivi, tenho o maior orgulho de dizer que fui sempre o melhor aluno da minha turma (houve vezes em que era o segundo ou o terceiro, mas já na faculdade, heheheheheheheh). Eu ia à escola sem uniforme (ou com uniforme incompleto, ou com uniforme quase idêntico ao dos restantes), com sapatos rotos e de barriga vazia, e estudava na mesma sala com filhos de gente graúda deste país. Consegui formar-me graças ao esforço e confiança dos meus pais (especialmente da minha mãe) até ser a pessoa que sou hoje.
A minha mãe vende ovos, sabias? E colocou, sustentou e retirou da faculdade um tipo com os tomates que me orgulho hoje possuir. Fiz a faculdade inteira a morar numa casa de um quarto e sala, partilhada com mais 5 irmãos, sem luz e sem água, à 20 Km da cidade capital. Em Tsalala, sabes aonde fica isso?! E há dez anos atrás aquilo era o deserto do Sahara com floresta densa!!! Eu lia fichas e livros de 1 Kilograma (de Samuelson, Huntington, Krugman ou de 300 outros autores), a luz do candeeiro, todas as madrugadas de 2001 a 2006, e graduei quase com distinção…
Hoje até tenho a ousadia de dizer que não uso nem metade do meu potencial (por circunstâncias diversas) e mesmo assim continuo sendo SOBERBO (com maiúsculas e boldado mesmo, significando magnífico, e não presunçoso, heheheheheheheh) que a maioria dos meus colegas, amigos, concidadãos, conterrâneos, compatriotas, companheiros de jornada, de barraca e de vida diversa, etc, que usam quase todo o seu potencial intelectual (ou físico ou mental ou produtivo, whatever) e fazem patavina alguma… Com o pouco que me se tem dado a fazer (que já é excelente, comparado com o que fazem os milhares de lambe-botas, medíocres, alinhados, conformados, parasitas, yes-manistas e servos hipócritas do sistema), tenho contribuído à minha maneira para o desenvolvimento deste país, mesmo recebendo mal ou mesmo nada. Diga à vontade que sou convencido e tal, e que vou dar com a bunda no passeio dos 33 andares, quando for a cair do estandarte em que me julgo encontrar… I DON’T CARE, BABY! O meu mundo não é este nem é aqui, apanhaste? Estou aqui pelo destino e não pretendo morrer em vão, igual a ti ou aos outros que se parecem contigo ou que os tens como referência de vida ou modelo de postura. E apesar de não me sentir parte deste mundo, não desistirei de viver nele porque tenho a plena consciência de ter vindo para aqui com uma missão por cumprir, e vou segui-la até ao meu fim, son. Escreva isso.
Podes falar ou pensar o que te apetecer a meu respeito. Eu sei que cheiro mal, man... Não sou nem pretendo ser perfeito. Sou um gajo focalizado, extremamente competente em tudo o que faço (até a beber, no job ou na cama com as mulheres da minha vida) e isso já me basta. Tenho luz própria, percebes?... Este texto não é de modo algum auto-promotor ou sei lá. É só para me perceberes melhor. Não é da tua conta se tenho pretensões de grandeza, se tenho problemas de regressão psicológica ou se bebo porcamente, djon… A vida é minha. Ou é tua?! Aonde é que te dói se o meu salário serve para sustentar os meus vícios e caprichos? Quem é que esfola o cabedal, eu ou o teu pai? Grrrrrrrrrrrrrrr… Eu já me dou por satisfeito se hoje compro um fato Giorgio ou se tomo 13 caixas de cerveja preta em dois meses, sem pestanejar!...
Para te deliciares, e em jeito de fecho, meta no teu traseiro estes versos:
"Deixa a vida me levar para onde a vida quiser
Mas às vezes também vou para onde a vida não quer…"
(Gabriel o Pensador, "Deixa Quieto")
E porque este mano é dos que gostam de partilhar, de dar a cara, de se assumir – com o orgulho que não preciso de reforçar porque esta carta fala por si - este identifico-o: Edgar Barroso. E porque eu gosto das coisas “no fake”, verdadeiras mesmo, ao Edgar, o meu grande kanimambo (obrigada).

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Peneira vida


Quando cheguei a Moçambique montei casa, e nas práticas locais casa envolve empregada, e guarda, e jardineiro… E nas práticas locais ser senhora tem regra, faz assim, e assim… e ouvia eu todos os dias:
- Mas senhora… Senhora não sabe afinal? – seguia-se um olhar de soslaio, um desdém que afirmava categoricamente, “esta senhora nem sabe ser senhora!”
E cada dia sentia mais forte este meu destalento para senhoriar casa em África.
- Senhora, não tem pilão aqui em casa.
- Senhora, não tem ralador de coco aqui em casa.
- Senhora, não tem fogão de carvão.
- Senhora, não tem esteira….
A cada uma destas afirmações seguia-se a minha expressão aberta, a minha interrogação escandalosa. Eu se na grande maioria das vezes não sabia de que falava Leontina, numa minoria das vezes pensava que sim e arriscava e na totalidade destas tentativas eu… falhava.
- Senhora aqui nessa casa nem peneira não tem!
Eu não sabia. E na verdade como nas mais profundas aprendizagens da vida o entendimento de tudo isto só chega mesmo mais tarde. Sim, claro que com a ajuda da empregada a casa passou a ter todas estas coisas, mas na minha cabeça a função delas era… misteriosa. Não tanto a funcionalidade, um pilão de inicio estranha-se mas depois vê-se bem para que serve. Ou não… um utensílio em casa africana não é apenas isso. O que me parecia ver nos olhos de Leontina é verdade, para ela uma casa sem estas coisas nem é casa!
Visitei Nampula. Viajo sempre.
E em Nampula encontramos outro povo.
O povo da floresta, que tece com ervas a vida.
O povo dos Grandes Lagos, que peneira entre ervas seus grãos de vida.
O povo do sorriso que habita muito Moçambique. Espalhado pelas terras, junto aos lagos e na costa, entre as melhores comidas e as magias mais densas.
As ervas, os frutos, as sementes.
- Aqui temos medo, joana. Homem que viaja para Nampula para trabalhar não regressa, macua engarrafa pa!
Claro que me falam da beleza, da beleza das mulheres.
Das peles claras na misturas das gentes, nos sorrisos rasgados, no arrastar misteriosamente sensual de um chinelo, no manear lento da anca.
Macua trabalha as intimidades com óleos de coco, e os músculos mais secretos enfeitiçam os homens. Aqui diz-se assim.
Macua não trabalha, banha-se e trata-se com pós de mussiro – pó feito no esmagar de um arbusto - e outras ervas mágicas.
Nos rostos as máscaras de beleza emitem os sinais.
Nas ruas de Nampula passam as mulheres, chinelos arrastados, capulanas na cintura, trouxa na cabeça e no rosto… a máscara branca do mussiro.
Nas ruas de Nampula as mulheres passam a sua mensagem, não é preciso falar ou cantar, olhar com sugestão ou acenar o atrevimento, não é preciso. Basta saber no rosto desenhar a máscara de pó, e dependendo das formas e da opacidade das cores e das quantidades comunicar. Sim, eles sabem.
São beleza e comunicação, com o homem marido, com as amigas, com o homem amante… dão sinais da disponibilidade para o amor, do estado físico, falam das vontades e das indisponibilidades. Falo das íntimas, claro. Macua é intimidade, é fogo no amor.
E dizem que são as montanhas que enfeitiçam as gentes.
As montanhas enquadram a paisagem feita de longos coqueirais… ainda me deslumbram os topos altos dos coqueiros, que doiram ao sol.
O calor é seco. E na rua principal de Nampula eu caminho.
O sol brilha o azul do céu. Não sei como é mas o ar parece assim, brilhante.
Em frente ao hotel uma criança pede esmola, está no chão, as pernas parecem braços e são inúteis para caminhar, às mãos parece que nenhum pulso se liga e são inúteis para agarrar. Ele arrasta-se no chão. Olha-me. Apenas. Eu olho de volta. Tiro uma fotografia, ele não sorri.
Visito nos mercados os lixos e os peixes, o tabaco enrolado e as longas bancas de missangas de plástico, todas as cores e combinações. As vendedoras de carvão, longos corredores de chão enegrecido pelo pó de carvão. Neste chão sentam-se as mulheres que carregam crianças. As crianças mulheres vendedoras, sorriem para mim.
Vejo nos mercados os objectos de casa… aprendo, aprendemos sempre.
Nas bancas ao fundo vendem ethekwa.
Feito de tiras finas raspadas das canas de bambu. As tiras entrançadas no fundo, terminadas com o muyepe, um pau bem raspado, cosida no final com o arbusto hururi.
Na ethekwa a mulher transporta e conserva as sementes, os frutos e cereais. Nela ela escolhe o arroz e o milho, a mandioca. Aqui neste objecto vemos o centro da terra, e sem ele mulher não é mulher de verdade, precisa de vizinha, de irmã, de mãe… precisa de perder homem para segunda e terceira mulher.
Aqui começa a vida, aqui se iniciam os jovens.
Ethekwa é abutre e milhafre.
Olaquiwa ensina a todos os jovens como se faz, ensina a entrelaçar no centro as tiras, ensina sobre o centro da terra, sobre a estabilidade do lar.
E quando o homem chega a casa e vê o cântaro de água tapado com ethekwa e com o pau que amassa a caracata por cima ele sabe. Se a peneira está levantada ou ao contrário, pendurada ou no chão, ele sabe. Ele sabe da comunicação do amor. São as palavras do desejo que se revelam assim. Os desejos e os corpos, a indisponibilidade para o sexo, o momento das luas, o convite ao amor.
Nos ritos femininos aprendem as mulheres a falar a partir deste objecto.
Os bebés conhecem cedo o toque das tiras entrançadas. Depois de ser protegido com o banho wakulelia muana a criança deitada na ethekwa é lançada aos quatro pontos cardeais, autorizando o casamento; ou trocada entre mãos saindo e entrando na casa - protegendo dos espíritos.
Está presente nos primeiros passos, quando a criança tarda a começar a andar é sendo arrastada em cima das tiras entrançadas que começa infalivelmente a caminhar.
Está presente na morte, é com ela que abrimos a cova, é com ela que lançamos as terras para tapar o corpo.
Está presente na magia, se o homem é abandonado, é aqui que se misturam os medicamentos tradicionais, durante três dias sivela (gostar) são misturados, e ao fim desse tempo o coração da mulher palpita e nele o desejo de voltar para casa.
A ethekwa é o lar, simboliza a estabilidade, toda a casa tem uma.
Na banca do fundo vendem peneiras, como a que faltava na minha casa…