sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Lá, onde se deixa o coração


Ensinaram-me aqui que o tempo não existe. O tempo pertence ao sol e à lua, nós que vivemos na terra que sabemos do tempo?
Estou deitada na esteira e vejo apenas a lua grande, no céu. Sinto a luz da fogueira que ainda arde, daqui a nada acaba, e aí somos, eu e tu, apenas. E o encontro é feito assim mesmo, debaixo desta lua cheia; com o som do vento nas folhas do coqueiro, e com o cheiro salgado do mar misturado com o odor enjoativo da xima que coze.
Estou na Catembe, na outra margem, e bebo vinho tinto misturado com coca-cola. Sim, de inicio eu também estranhei:
- Mas, que ideia é essa de vinho com coca?
- Sim, nós bebemos, chamamos catembe, em Angola também bebem!
- Sim mas… porquê?
- Mas amiga, tu bebes o vinho puro? Fica muito forte!
- Vocês pa, toda a gente bebe puro, só mesmo vocês é que misturam com alguma coisa!
Mas depois, olhando melhor o pacote (!) de vinho em cima do colmer…
- Bom, pensando bem, dá lá uma coca.
Sim, já disse muitas vezes que aqui me ensinaram sobre o tempo… ou será que foi aqui que aprendi? Porque África não se explica, não se ensina, sente-se.
Daqui vejo as luzes da cidade, Catembe é uma península mesmo em frente a Maputo, o caminho até cá, por terra, é longo e esburacado, fazemos a viagem de barco. Todos aguardamos a prometida ponte que irá atravessar este Índico aqui, onde se mistura com o rio Matola. Uma ponte que transformará esta margem em lugar cobiçado, agitado, vivido. Mas por agora é assim, calmo. Estamos perto da cidade mas aqui há menos luz, o céu encanta-me mais, a água é mais clara e a areia mais limpa. Aqui dá para caminhar de pé descalço sem ter medo de pisar os vidros, as caricas, o lixo que invade a praia do outro lado e que a ninguém parece preocupar. Aqui dá para nadar sem ficar preso no matope pastoso, sem receber em cada braçada os cheiros que o escoamento desorganizado das águas faz do lado de lá da baía. Aqui ainda se sente uma praia, um céu. Eu gosto de vir aqui, a viagem é desorganizada nos pequenos barcos ou no grande, demorado e dispendioso ferry… sim, vir à Catembe é um processo, mas eu gosto de vir aqui.
Depois, deste lado, não há nada: há as barracas das cervejas e do frango no churrasco; há o mato esparso; a estrada de terra batida; há as casas à beira da água entregues ao abandono dos quintais sujos, das paredes secas, das janelas partidas, dos telhados incompletos, das torneiras sem água, dos tectos sem luz… Um dia cheguei a pensar viver aqui, e os meus amigos riram:
- Na Catembe?! Ah, é branca mesmo esta! Não se vive lá, não tem nada! Não tem mercado, não tem restaurante, não tem discoteca, não tem djobs lá! Vais fazer o quê? Mas vão fazer ponte, os chineses vão fazer, depois vamos todos, reserva agora terreno e faz lá quintal com brai, havemos de vir te visitar todo final de semana.
Sim, não tem nada aqui. Mas nós não precisamos de nada, isso eu sei.
Olho a água, num barco está pintado BAGAMOYO.
- Sabes que há muitos lugares que se chamam assim, em África?
- Ai é? E são assim como a nossa rua de bagamoyo?
- Ah! Ah! Ah! Não. Sabes que significa?
- Nada, não sei.
- Lá, onde se deixa o coração.
- Sério? Ya… mas mesmo aqui na nossa bagamoyo muito coração fica! Pensas que não? Essa zona da baixa eeehe! Ali mesmo na rua Araújo muito homem se apaixona. Strip-club é romântico pa! Tem damas doces! Tenho amigo de meu brada que se apaixonou por uma dessas prostitutas de sainha que fica ali na esquina. Ysh, coitado pa…
- Apaixonou?
- Ya, tava mal ele mesmo, depois era já um jonh cota, né?
- Mas sofreu de amores mesmo, mesmo?
- Ei, sofria! Mesmo, vinha ver-lhe to-dos os dias, lhe apanhava de manhã, dava boleias a todas bradas, as outras trabalhadoras do sexo, né? Ya.. via-se que sofria ele.
- Sério?
- Tás a duvidar? Era um assim da tua cor, ele, vocês como sofrem com essas coisas de amores pa!
- Ya…
Eu lembro-me da Tanzânia, para mim o país dos primeiros amores africanos, foi lá que me contaram que os escravos ficavam presos em Bagamoyo, de noite eram transportados de barco para os mercados de escravos de zanzibar, e… chamavam assim à cidade-porto, “bwaga-moyo”, coração ficava ali, porque nunca mais viam a sua terra…
- Essa estória contaram-me lá, na Tanzânia, aqui sabes porque se chama bagamoyo?
- Nada, eu não sei essas coisas de nomes, nem conheço Tanzânia, eu sou daqui, nasci na Mafalala eu!
Eu também não sei, eu não nasci aqui… mas gosto de me perder nas estórias dos lugares, nas razões dos povos.
Contaram-me no Quénia, a propósito de uma zona onde há muitas localidades com o mesmo nome, que os governos, nas suas tentativas de sedentarização das tribos, fomentaram as placas que assinalam as localidades, contaram que as tribos - chegado o momento das chuvas ou das secas, o momento de mudar de lugar - avançavam… levando consigo as placas com o nome, colocando-as nesse outro lugar para onde iam viver. Sim, faz sentido, onde eu vivo chama-se assim, não importa onde é, importa que eu estou aqui.
E na verdade o mal de África é assim, é mal de amor que não se cura mudando de lugar.
Olho o céu. Chovinha. Sim, em moçambique não borraça, chovinha.
Amanheceu já e nós queremos apanhar o batelão de regresso, mas só daqui a uma hora… esperamos.
Sim, aqui aprendi sobre o tempo, de como ele corre, se quiseres; e se suspende quieto, se desejares. O tempo é teu, de nada vale nervosar os dias a tentar viver o tempo exterior a ti. Mesmo eu, que escrevo, finto o tempo, apanhando as memórias do que já passou, do que se perdeu; e viajo, avançando-o nos desejos do futuro…
O ferry chega, tem o mesmo nome, Bagamoyo.
Sim, o presente é hoje, e mesmo nos meus planos de viagem eu acho que é aqui mesmo, é aqui que me fica o coração.

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