Vivi em Moçambique tres anos, e escrevi, escrevi muitas cartas (estas publicadas no Jornal SOL, edição africana).
sexta-feira, 7 de janeiro de 2011
Eles
Eu não entendo as generalizações. Claro que me dirão que são compreensíveis, até necessárias na comunicação mas… são perigosas. O risco de tomar a parte pelo todo é muito grande e se nos habituamos a essa… simplificação da comunicação a vida nas suas únicas e maravilhosas nuances passa-nos ao lado…
Estou de viagem:
- Bom, lá vamos nós enfrentar a fronteira. Estes gajos aqui pá… vamos passar mal com eles!
- Não sei… falas dos sul-africanos? Eu tenho boas experiências com sul-africanos…
- Mas buers?
- Sim, tenho boas e menos boas. Com buers, com zulus, com pessoas de origem italiana, portuguesa…
- Esses pior! Sabes que eles como foram forçados a mudar-se para a África do Sul ainda são piores porque tem raivas contra nós.
- Nós? Não sei… eu tenho amigos sul-africanos de origem portuguesa…
- Porreiros?
- Maningue.
- Ya, tu estás cafreal! Já falas mesmo como eles. Sabes o que é cafreal? É aquela galinha que eles fazem por aqui.
- Aqui?
- Em Moçambique.
- Eles?
- Ya.
Eu sorrio um sorriso amarelo… E por esta altura já estou um pouco curiosa… eles? quem são “eles”?
Apetece perguntar… mas corro o risco de me faltar diplomacia… fico em silêncio e observo.
Estamos onde eu gosto de estar, bem no meio do mato:
- Pessoas aqui têm medo de corujas, e quando as encontram matam-nas, claro que eu não, eu sou um ranger, entendo as coisas da natureza, mas as pessoas da minha tribo têm medo. Acham que as corujas porque vivem de noite, e voltam assim a cabeça, quase 180 graus, estão a ver? As pessoas têm medo. E é o medo que nos faz matar. Eu não mato, sei lá se não é meu ndzuti.
- Ndzuti?
- Sim. Acreditamos que o ndzuti é como… uma sombra, um espírito com características humanas, depois da morte de alguém o espírito mantém contacto connosco, e pode estar aí, nesses animais nocturnos. Eu não tenho medo. Faço as minhas oferendas, as minhas homenagens, boas comidas, vinhos, meus antepassados estão em paz.
- Fazem oferendas? Como paxar?
- Oferecemos bebida e comida ao nosso antepassado. Como tu.
- Como eu?
- Sim, pelo menos os portugueses fazem.
- Fazem?
- Fazem isso de, por exemplo cozinhar a comida preferida da avó que morreu e pôr na mesa, num prato. Ninguém come, é para ela. Ou na mesa onde o chefe da família se sentava pôr no lugar dele um copo de vinho…
- De vinho novo. Daquele amargo, com duas colheres de açúcar amarelo.
- Vês? Como tu, tu fazes isso!
- Eu não faço, mas estava a pensar no meu avô, ele gostava de vinho assim.
- Mas pergunta a eles, aos portugueses. Porque eles fazem.
Eu penso na casa dos meus avós, no lugar onde meu avô se sentava, na gaveta onde havia pedaços de pão caseiro e bacalhau assado na brasa. E pergunto-me se alguém lá em casa fazia isso, se eles faziam. E pergunto-me de novo quem são eles. Os “eles” que o Michael conhece fazem isso.
Michael é um experiente ranger de uma reserva privada, e aqui, nas reservas que são privadas, pisa-se o capim, assobia-se para chamar a atenção dos animais e avança-se com o jipe acompanhando duas irmãs leoas, que segundo ele:
- Procuram algo para comer.
Acompanhamos de jipe aberto, nenhum dos rangers está armado. As leoas não querem saber de nós. Não é perigoso, “eles devem saber o que estão a fazer”, penso eu.
Claro que me entusiasma esta proximidade e recebo o meu “momento national geografic” – uma perseguição - uma caçada – uma presa na boca de um predador.
- Um snack – diz Michael – ela nem vai partilhar com a irmã, it is not enought to share.
Eu já tinha estado perto de animais selvagens, muito perto mesmo, mas sempre na sensação de que por acaso, ou por vontade do animal, os nosso caminhos se encontram, aqui não é assim, o desporto é mais radical e avançamos até quase os tocarmos. Eles não se importam. Estamos parados tão perto que podemos ouvir os ossos da cria de worthdog desfeitos pelos dentes afiados da leoa.
Parece tudo tão natural, nós conversamos:
- Casado? Com filhos?
- Sim, casado, com dois filhos.
- Uma mulher?
- Bom… sim, eu tenho uma mulher mas estou aberto para uma segunda e uma terceira.
- Ah! Ah! Ah!
- Sim, eu sou africano e tenho muito orgulho da minha cultura.
- Claro, claro…
- He! He! Não, estou a brincar, nós, graças aos casamentos mistos – entre pessoas de tribos diferentes - já não conseguimos manter isso. Pois é, estamos a perder as nossas tradições por nos misturarmos… eu tenho uma mulher e não posso ter mais nenhuma, ela não haveria de permitir, está a ver o que é isto? É uma violência! E uma pena… mas fazer o quê? Fiz minhas opções quando casei com ela… Eu sou africano, devia ser mais tradicionalista talvez, mas é o que dá quando casamos com uma de outra tribo. Porque eu sou Shangaan… Sabe o que significa Shangaan? O que perante a guerra deixa os seus filhos… não é bom nome, mas é minha tribo, fazer o quê? À noite contamos muitas vezes nossa estória, dizemos “Garingani, n’wana wa Garingani!”
- Sim, nós também dizemos isso! Karingana na karingana!
- Dizem, vês? É igual em Portugal!
- Não, nós, aqui em Moçambique, também fazemos!
- Mas tu és de onde?
- Eu?… bom…
- Disseste “nós”.
- Era para dizer “eles”?
- Os moçambicanos?
- Sim, quero dizer, nós, em Moçambique também fazemos isso, ou fazem…
- Isso das estórias? Ya, nós também, dizemos “eu sou o narrador, a filha – são as mulheres que mais fazem - do narrador” e todos repetem “Garingani”.
- Ya, nós… eles… aqui… ali… enfim também se faz isso.
- O que vês ali é um camaleão, sabes o que é?
São animais que mudam de cor. Nós aqui acreditamos que se lhe tocarmos nós também mudamos de cor, eu não gosto dessa ideia.
Eu não tenho medo de insectos, escorpiões ou cobras, mas de camaleões?! Ya, tenho medo! A minha filha lá em casa às vezes persegue-me com um para me assustar.
Que posso fazer? Acho que é essa coisa de mudar de cor que eu não entendo! Talvez por isso tenho medo deles.
De novo “eles”… falariam os meus amigos dos camaleões?
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Brutal e sente-se, de facto, o calor das palavras.
ResponderEliminarParabéns
:)
ResponderEliminarmuito obrigada Ricardo