quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Afecto africano


Estou com amigos em Maputo, num bar da feira popular eles dançam:
- Nice, os teus amigos estão maningue apaixonados!
- Ya… maningue mesmo.
- Namorados?
- Bom… eles estão noivos.
- Ai é? Para quando o casório?
- Hum… ela acho que anelamento foi agora, casa em Outubro.
- Ela?
- Sim. Ah, ya… não estão noivos um do outro…
Claro que é um disparate. É um disparate eu dizer que aqui os afectos são diferentes. Que aqui, em África, há os calores, claro; as temperaturas, com certeza; o ferro da terra; as humidades do ar; as doçuras das frutas; as frescuras dos cocos. Claro há isso tudo aqui. Depois há os mistérios dos desejos, a comunicação tão directa das carnes. Há o magma da terra, a forte energia de Gaia, a inegável fertilidade do vele Rift e o poder fecundador da chuva, sim…
Não sei. Mas a verdade é que aqui, mais do que em qualquer outra parte do mundo que conheço, os afectos e a intimidade se diluem nas relações de fachada.
Acumulam-se invariavelmente em cada homem a primeira, a segunda… a terceira “casa”, em abençoado islamismo ou antropológico tradicionalismo. Na maioria das vezes hipocritamente escondidas por detrás do aparente, e importado, monogamismo.
Mas claro, é disparate. É disparate dizer que aqui é diferente.
Conversamos na esplanada:
- Joana, tens de entender, alegria de Moçambicano ta na cama mesmo.
- Não sei se é essa a questão.
- Sério, pode ter fome, pobreza e nudez em casa, mas sexo não falta.
- Sim, mas não é disso que falo…
- Olha, eu sou moçambicano e cresci nas zonas rurais, vim para a town, enfim por destino, procurando progresso profissional, mas aqui e no mato, o africano, no geral, pode até zangar-se com a mulher durante o dia, não lhe falar e por aí fora, mas chegado na cama, esquece-se as diferenças.
- Ah! Ah! Ah! Sim, mas isso até pode ser bom, né? Não é disso que falo, falo da hipocrisia que anda à volta disso.
- Sim, mas joana, a mentira que se usa… enfim, é de tipos que pensam que falando a verdade pode não dar certo com “casa dois”… é por aí, percebes? Entende-se. Então daí andam mentindo a ver se mantém as duas partes… e isto não é só os homens, as mulheres também.
- Sim, mas é hipocrisia.
- Naturalmente.
- E isso não é nice.
- Lógico. É por isso que para mim a vida é um teatro sem ensaio, planifico o básico – cumpro meu papel - o resto curto à minha maneira.
- Ya, mas eu não gramo disso.
- Como assim? Gostas do "DIRECTO ao ASSUNTO"?
- Claro! Gosto de ser eu e assumir isso em tudo o que faço!

- Ya, nós levamos muito tempo a nos enganar uns aos outros enquanto podíamos poupar muito o time e maximizar os momentos.

- Exacto.

- Ya, tu tens razão, mas não te vais dar bem aqui, sabes?... Não vais não, és muito demasiado ocidental, sabes?

Claro que me farto de escrever que as generalizações são criminosas, e as que eu aqui faço não são menos. Claro que o que é fascinante, em África e no mundo, é a diversidade de culturas que existem, a oposição dos seus hábitos, o contraste das suas tradições, mas que aqui isto que sinto é uma constante, sim, é.
No restaurante:
- Eu estou a perguntar se tu tens alguém. Sim, porque eu estou a dizer directo, eu sou-te fiel, eu não tenho uma segunda pessoa!
- Mas, tu és casado!
- Sim, ya mas… é pá! Porque és confusa!? Tu estás a entender! Eu não tenho uma terceira pessoa!
Mas talvez não sejam mesmo os afectos que são diferentes… talvez seja eu que… os veja com outros olhos.
Os afectos mudam, ou somos nós que mudamos?
Sim, porque moçambicano não dá carinho.
Moçambicano não beija na rua. Não abraça de repente o pescoço, de surpresa… não, tu não és assim.
Telefonas, e é no quase formalismo do “apenas para ouvir a tua voz” que se manifesta o teu… interesse por mim. Mas o amor, aquele que dá frio na barriga, aquele que faz sofrer com as ausências e nos faz tocar, e olhar, e viajar, esse não o sentes. Não é culpa tua que não seja assim. Nem sei eu se não são coisas que estou para aqui a romantizar. Coisas que não existem, que existiram na naifte do passado. Não sei se é a vida que já não me deixa ver assim as pessoas, se é aquilo a que chamam “diferença cultural” que não nos aproxima assim. Mas não, não sinto.
Viajas e esqueces-me. Simplesmente assim. Sem palavras, sem mensagens, sem bips ou pleasecallme.
Os afectos aqui são diferentes… não preciso que mo digam. Sim, revelam-se nas atenções do que… socialmente se vê. Do estilo, tu levares-me a conhecer os teus amigos é coisa afectuosa, é assumir de desejos e compromissos, e tocares minha mão na rua é dizer ao mundo que estás disposto a aceitar-me, a mim, a estrangeira.
Sim… mas não é disso que falo. Falo do colo suave, do carinho simples nos cabelos, do olhar que se prende por um momento no meu. Da mão que num abraço apoia a minha nuca…
Mas disso não há, desse amor revelado e surpreendido nas coisas mais inesperadas, desse não se faz.
Escrevo sobre Maputo, e é a cidade que me fala. São as ruas de alcatrão gasto que sussurram, as acácias que cantam, a marginal molhada que segreda… e são os contentores que espalham os cheiros que guardam os segredos e… não falam.
Reclamo que tu moçambicano não falas, não mimas, não apaixonas – por muito que a palavra te saia facilmente da boca - não sentes…
Mas agora… o verão aquece os corpos e a efemeridade do tempo mostra-se. As mangas na cozinha apodrecem e o queimar do incenso na minha casa mistura-se com a humidade do ar. O quarto está cinzento. E eu sinto-me assim.
Voltam as febres… das gripes de verão, das insolações, das malárias, dos feitiços…
Eu, como fazem os cães quando estão doentes, deito-me e descanso, não como, não bebo. Vejo pela janela os pingos desorganizados das chuvas de Janeiro. Ao lado da esteira um bule com chá de ervas que me trouxe a empregada, e um copo. Estou enjoada.
A verdade é que te sinto a falta. A verdade é que agora, a esta hora do anoitecer em que as cores ficam mais vermelhas e a lua luta por protagonismo com o sol, agora penso apenas no teu beijo. Africano.

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