Vivi em Moçambique tres anos, e escrevi, escrevi muitas cartas (estas publicadas no Jornal SOL, edição africana).
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
A culpa foi do canhú
Batem à porta, ele tem um sorriso nos lábios e uma garrafa com um líquido espesso e amarelado na mão:
- Olá! Trouxe canhú para ti.
- ? É o quê?
- Não conheces? Prova, este é doce, é sumo, podes beber à vontade! Mas acaba! Não deixes nada na garrafa!
- Porquê?
- Isso fermenta e fica… perigoso!
- Mas porquê?... quero provar, vou deixar fermentar um pouco.
- Ysh!... ok… tu que sabes…
É 4ª feira e eu vou para o CFM:
- Foi eleita a mais bonita de África – Esta estação conheço-a mais pelas noites longas no bar kampfumo bistro que pelos caminhos-de-ferro, mas garantiram-me que funcionam, que os comboios saem mesmo daqui. Linhas para Marracuene, para Chokwe, para Boane.
Eu avanço para experimentar, entro num comboio feitos de bancos de pau:
- Vestida de capulana! Uau! Que nice, vais ao festival das capulanas mesmo!
Sim, capulana também é coisa desdenhada pela classe média maputense, mas tão apreciada pelos mais tradicionais e pelos mais… artísticos, obviamente homenageada pelos mais… estrangeiros. Como eu.
A viagem para Marracuene custa 5 meticais. As carruagens estão meio destruídas, os bancos são de pau, mas o comboio é bonito… eu gosto de comboios. Sim, hoje pus capulana e vou a Marracuene, ao Gwazamuthini, ao festival da Marrabenta, à festa do canhú. A viagem de comboio é mahala, está por conta do festival da ruidosa “arrebenta!”- música tradicional do sul de Moçambique.
A época do canhú é especial e preciosa, envolta em estórias, mitos e mistérios. É merecedora de cerimónias de exaltação dos antepassados; de preces dos fazedores de chuva; de homenagens à fertilidade da terra, das mulheres e dos homens; de pedidos de bênção de comida. Todos os anos, em vários pontos das províncias de Maputo e Gaza – e um pouco em Inhambane – as pessoas deslocam-se para perto da árvore do canhú, para perto das mulheres que dos seus frutos tiram os sumos… míticos.
O evento é dirigido por régulo e dura até ao anoitecer, envolve representantes do Conselho Municipal e do Governo da Provincial, gera emoções e reconhecimentos, promessas de antepassados e respostas a pedidos – os povos pedem chuva.
E em Marracuene tudo se mistura. Eu estou no comboio que segue para lá, aproximadamente 30 km a Norte de Maputo. Lá o canhú mistura-se com as celebrações de Gwazamuthini, para alguns tudo se resume a uma bebedeira de ukanyi, mas as primeiras horas a cerimónia é de evocação e exaltação dos espíritos dos guerreiros, com o tradicional “kupalha”. A festa prolonga-se por todo o dia 3 de Fevereiro, o feriado dos Heróis Nacionais.
No caminho fala-se canhú. Esse é o tema: o mais fresco, o mais puro, o mais tradicional, o mais fermentado… Provamos com paladar gourmet e partilhamos com amor fraternal. É líquido precioso, disso não há dúvida.
O comboio chega, da estação vê-se o recinto cheio de gente:
- Vamos! Hoje é noite de amor livre!
Aqui compra-se a bebida que tradicionalmente não se pode vender, bebe-se o líquido que criança não pode ver.
E nestes dias, nos dias do festival do canhú, não importam os compromissos, os casamentos ou os noivados, aqui vale tudo, debaixo da lua e das estrelas, tudo vale.
Dança-se e fazem-se as cerimónias das chuvas. Homenageiam-se guerreiros, as vitórias sobre os colonos, celebram-se os feitos heróicos dos moçambicanos e partilha-se a carne sagrada.
Tradicionalmente um hipopótamo é caçado nas águas do rio Incomati e a sua carne é comida por todos. Mas nos últimos anos do rio já não avança o animal que, dizem os mais velhos, “se entregava em sacrifico, sem luta”, não sabemos porquê mas “as águas do rio recebem muita água salgada”, dizem uns; “as tradições não são respeitadas e os espíritos não estão contentes” dizem outros. Não, eu não vejo hipopótamos. Numa das esplanadas montadas à minha frente uma cabeça de vaca fumega na grelha.
Por todo o lado garrafas de canhú, e continua a discutir-se a sua pureza, o seu grau de fermentação. O sumo é feito do espremer do fruto do canhoeiro, ou árvore de marula, como é conhecido na África do sul. Garantem que sumo é sumo, não tem álcool, mas também se sabe das bebedeiras que apanham os macacos e os elefantes – grandes apreciadores deste fruto.
Porque o álcool é feito… pelo tempo, pelo calor:
- Bebe! Basta deixar aí o sumo no copo e logo fermenta… e alcooliza.
Eu estou sentada, bebo, e já não me apetece levantar daqui…
- Eh! Eh! Olha para ela, olha o canhú a fazer efeito!
- Mas… eu estou a beber sumo!
- Mas ele fermenta, mesmo no teu estômago fermenta.
- Nem sinto as pernas…
- Pois!
- Apetece só ficar, dormir…
- Tá a ver?! Ah! Ah! Canhú não falha! E cuidado que vem aí outros efeitos!
- Que efeitos?
- Ela não sabe? Vai saber!
O canhú é tradicionalmente feito pelas mulheres. Mas aqui, “nas comunidades” elas não o bebem junto dos homens:
- Nas festas de canhú as casas de banho dos homens e das mulheres têm que ser separadas, bem bem! Senão nunca vagam! Ah! Ah! Ah!
Tradicionalmente é bebida de relações delicadas: aproxima sogra e genro - é ela que prepara e lhe oferece a primeira garrafa; aproxima mãe e filha - no dia seguinte à festa elas partilham as misteriosas intimidades dessa noite.
- Sei uma estória de uma violação em plena cerimónia de canhú, mas nem se considera crime! É caso que nem vai a tribunal isso aí!
- Os rituais de canhú são exaltados por cenas de adultério que nunca serão julgadas por ninguém, por motivos aparentemente óbvios.
- A esposa do Régulo trata o canhú com muito carinho, mas sabe como a bebida o vai conduzir para os caminhos da infracção do código conjugal.
- Mas todo o mundo releva, pessoas não têm culpa, basta apenas se for apanhado dizer: “mas amor, a culpa foi do canhú!”
- Pois bem, este meu desejo de provar esta bebida está a tornar-se uma obsessão e posso jurar XICUEMBO XANHACA que não é por alegadamente ser um poderoso afrodisíaco capaz de envergonhar o Viagra!
Eu regresso de Marracuene, entro na cozinha e ainda está a garrafa de canhú que esqueci na prateleira:
- Olha, ainda temos… - PUM! A rolha salta como numa garrafa de champanhe!
- Eh pah, é mulunga mesmo, eu disse-te, bomba explodiu! É perigosooooooooooooo… anda cá!
Porque o canhú… é afrodisíaco.
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Adorada pela brasileira aqui... Amo capulana! Uso demais, principalmente porque foi presente de um moçambicano lindo!
ResponderEliminarJoana,
ResponderEliminarLinda a história que contas e, Moçambique aqui tão perto,...
Sou teu conterrâneo e, irmão da Celeste, Miguel,....
Não escrevo tão bem como a Joana, mas se tiveres interesse podes "viajar" pelas minhas histórias do vinho e da vinha.
cumprimentos,
Adriano
hello Lisandra - beijo grande para o Brasil!
ResponderEliminarolá Adriano, obrigada,vou ver :)
beijinhos