sábado, 31 de julho de 2010

Bandeira órfã



É Sexta-feira, está calor e eu transpiro. No palco do teatro Matchedje eu transpiro. Sou estrangeira e pela minha cor as possibilidades de casting no meu trabalho como actriz em Moçambique são… limitadas. Mesmo assim eu estou em palco, interpreto uma portuguesa, branca, acabada de chegar a Maputo. Interpreto-me? E o desafio é maior do que esperava. Comunicar em palco é comunicar com uma cultura e quando ainda quase não a conhecemos é… feito às apalpadelas.
Começou assim: chego a Maputo e visito um teatro, assisto a ensaios, a peça estreia dentro de uma semana, e a meio da sessão o encenador explica:
- Bom, nesta cena a Filipa entra e diz…
- Como? – pergunto eu.
- Sim, entras por ali, depois do Ilísio e dizes…
- Mas… eu não posso. Quer dizer, vocês estreiam daqui a uma semana, e eu… - no fundo o que queria dizer é que não sei como fazer, que normalmente ensaio três meses ou quatro antes de estrear, mas dada a expectativa já criada em relação à tuga a verdade é que não tenho coragem de o dizer.
- Não importa. Tens tempo. Uma semana é muito tempo.
Estreia. Eu tremo como nunca tremi num palco, o espectáculo é baseado num guião com um tema, um alinhamento – ou devia dizer desalinhamento? – de cenas com texto fruto de construção colectiva e lançado em improvisações, onde o espaço para palavra tem de ser… conquistado. Literalmente aos gritos. E se a minha voz não se afirma o que acontece? Simples, não falo. Aqui não há protagonistas nem figurantes, tudo se conquista ou perde no palco e muda todos os dias, a cada representação. Entre marcações e improvisações eu tremo. Um mês de carreira de espectáculo, eu tremo. Dois meses, três meses… tremia. Agora já não. Já quase no final do espectáculo eu, na minha personagem de portuguesa, estudo uns dossiers, tomo umas notas. Neste teatro Matchedje, que agora pertence a uma companhia de teatro, funcionou em tempos a CineGest, da gestão dos cinemas de Moçambique. Para a cena usamos adereços que vivem perdidos na cave do teatro, entre humidades e poeiras. Abro um dossier e em páginas amarelas batidas à máquina com o logótipo do INSTITUTO NACIONAL DE CINEMA e com o rodapé “Evite a mensagem oral. Escreva-a” leio (que transcrevo exactamente como a leio):
MINISTÉRIO DA INFORMAÇÃO
MEMORANDUM Nº 263/ AC/ 79
DE: ADMINISTRAÇÃO DOS CINEMA
ENVIADO EM 10.09.79
ASSUNTO: PROVENIÊNCIA DA BANDEIRA PORTUGUESA
MENSAGEM:
1 – Segundo o depoimento do trabalhador Julião António Langa, 3º projeccionista do cinema África, a bandeira portuguesa que há pouco se fez entregue no I. N. C. pertencia às organizações Cesar Rodrigues. Ela era colocada no mastro lá existente sempre que fosse dias festivos e comemorativos coloniais, ou domingos.
2 - Com a proclamação da Independência de Moçambique, e da consequente tomada do poder pelo povo, o então proprietário da empresa acima indicada, mandou guardar a tal bandeira na cabine deste cinema. A mesma permaneceu naquele lugar até à data do seu afastamento das funções que desempenhava nos cinemas e da sua posterior expulsão de Moçambique.
3 – Em 1977, aquando da intervenção dos cinemas Infante, Manuel Rodrigues, e Gil Vicente, o grupo Dinamizador dos cinemas tentou resolver este assunto. Alguns dos seus membros eram da opinião que a referida bandeira devia ser entregue às estruturas competentes e superiores. Mas contudo, não houve resultados positivos, isto é, ninguém assumiu decisamente a tarefa.
Entretanto, não houve ninguém que tomasse a iniciativa de entrega-la à Administração dos Cinemas, já criada, nem de avisar o I.N.C. Mantiveram-se calados e deram pouca importância ao assunto.
4 – Entretanto, e, como é do conhecimento das estruturas do I.N.C. no cinema África existe um camarada de nome Ramiro. Este camarada é da defesa e pertence ao ministério da Defesa Nacional. Costuma passar revista á sala, principalmente quando se prever uma possível realização de sessão de gala. Assim, um dia, encontrou a referida e informado sobre a sua proveniência, foi da opinião que o responsável local do Cinema, a enviasse para esta Administração.
5 – Uma vez entregue à Administração, nós, achamos oportuno e justo fazê-la chegar às estruturas da Direcção. De salientar que a mesma foi-nos entregue em 3 de Setembro corrente e passados poucos dias mandamo-la ao I.N.C.
Sem outro assunto de momento, subscrevemo-nos
UNIDADE DE TRABALHO E VIGILANCIA
O RESPONSÁVEL
A portuguesa do espectáculo lê a mensagem, e é escusado dizer que se não fosse o registo de improvisação seria difícil manter qualquer personagem, esta cola-se na minha situação de estrangeira real e ficcionada – arranco a página e trago-a comigo.
Moçambique é nação jovem, moçambicanos são bem próximos dos portugueses, são familiares, são irmãos. E na proximidade de irmão há confiança para risos e festejos e também para desabafos e insultos. Não é raro ouvir declarações neo-colonialistas na cidade de maputo. Proferidas tanto por portugueses como por moçambicanos. E em discussões mais calorosas o orgulho patriótico salta, a jovem nação enche-se de afirmações de independências e refere os ultrajes de outrora, desmarcados da história no mudar de nome das ruas, das cidades. E visíveis na influência marcada no desenho da cidade, nos rostos e nos nomes das gentes… por todo o lado. E depois de ler esta mensagem escrita entre cinemas, que encontro num palco de teatro, questiono-me sobre a nação, a identidade, as revoluções, as libertações e… dentro de tudo isto parece que uma bandeira não é nada. Mas é, e nesta mensagem parece ser mesmo a bandeira que se lamenta da repentina orfandade, está deslocada, perdida. Porque uma bandeira só existe porque tem pais não é? Esta bandeira é de onde?
E a bandeira, qual é a minha?

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