Vivi em Moçambique tres anos, e escrevi, escrevi muitas cartas (estas publicadas no Jornal SOL, edição africana).
sexta-feira, 16 de julho de 2010
Reciclar as calamidades
- Senhora peço dinheiro para comprar calças para meu filho, aquele alto, rasgou calças, nem para sair na igreja, não tem.
- Mas… ok, quanto é para calças?
- Senhora, me dá 200. Ou então me dá 50 mesmo, hei-de comprar lá nas calamidades.
- Nas calamidades?
Hoje fiz – ou fui veículo - do maior gesto de reciclagem de que tomei consciência.
A reciclagem existe, todos sabemos, ela acontece – nada se perde, nada se ganha - tudo se transforma – nem que seja em lixo. Essa é a lei da natureza. Essa é a nossa lei.
Sim, estamos esquecidos, voltados de costas e por isso castigados, deserdados da mãe natureza. Mas ainda, como todos os outros seres, movimentamo-nos nela e respondemos a suas leis - não porque sejamos obedientes, mas porque está para lá do que podemos controlar.
Em Maputo os pontos de reciclagem de lixo ainda são novidade, mas o gesto existe. Existe desde sempre porque antes das nossas criações tudo o que existia respondia à tal lei e… transformava-se. Mas ainda hoje as pessoas construem casas com garrafas de plástico vazias, com sacos de areia… e… usam as nossas roupas.
Muitos de nós reciclamos, quando oferecemos algo que para nós não serve mas que alguém vai usar.
Quase todos nós, no hemisfério norte oferecemos roupas para África. Mais do que roupa usada é roupa que não usamos – quantos de nós acumulam em casa roupa que não usa? Coisas que nós mesmos escolhemos e comprámos - já para não falar da que nos é oferecida, ou da que aparece misteriosamente nas nossas casas e ninguém sabe de onde vem - quantos de nós de tempos a tempos põe parte dessa roupa em sacos e oferece? Oferecemos para África, para pessoas que vivem com mais necessidades que nós, para a puderem usar.
E só um pouco depois de chegar a África me apercebi da presença dessas roupas. Porque de início, entre as roupas tradicionais, presentes em muitas zonas do país, e as marcas sul-africanas, no sul de África muito populares, existem o que nós chamamos as roupas ocidentais, as tais que tanto desiludem os turistas em busca de exotismo.
Maputo é assim, uma cidade cheia de pessoas vestidas com roupas “ocidentais”. E olhando melhor para as roupas comecei a ver camisas da GAP, ténis NIKE, vestidos GUESS e pullovers Tommy Hilfiger, roupas de marcas, usadas.
Estas roupas estão por toda a parte, não só nas pessoas, nas crianças, nos estendais no quintal das casas, mas nos mercados, em grandes bancas – à venda!
Sim, numa banca de rua, entre capulanas coloridas está pendurado um vestido de noiva branco, de folhos, como os que usam na minha terra. Todos os dias passo por ele, é poética a visão parece a própria noiva, no altar, à espera, solitária.
E aqui parece tão deslocado. Está à venda, foi oferecido a África por altura de uma qualquer calamidade.
À venda? Mas então nós não oferecemos estas roupas? Sim, o presente é negócio e nos mercados de Moçambique podemos comprar por poucos meticais camisolas da Beneton e calças Diesel.
Hoje comprei roupa vintage (palavra chic para dizer segunda-mão) numa venda dentro de uma vivenda da Somershield – a zona mais fina da cidade, onde residem os embaixadores, as cooperações internacionais, os homens de negócios e as famílias abastadas, moçambicanas e estrangeiras. Enquanto observava os cabides conversava com Rassul - somali residente em Londres desde há dez anos, agora em maputo - e perguntava de onde vinham as roupas, tão diferentes visualmente, nas suas texturas, no seu corte, nas suas marcas. Ela respondeu-me que estas roupas são compradas aos vendedores de Xipamanine - um gigantesco mercado ao ar livre onde podemos comprar quase tudo, desde peças de carro a carne de vaca – que vendem em gigantescos sacos as roupas “das calamidades”. Essas, que nós oferecemos nas campanhas de sensibilização para África.
Eu vivo aqui, vivia antes no hemisfério norte, na Europa, e lá – muitas vezes como processo de limpeza de consciência, ou em educada solidariedade – ofereci muita roupa.
Ora eu, hoje, fui comprar roupas que um dia terei comprado, que terei oferecido para África, que terá sido por sua vez por África ou através dela vendido para África, que terá por sua vez sido comprado para venda no Xipamanine, de onde Rassul escolheu e comprou, de quem eu compro. E a mim já me parece demais! Quantas vezes terei eu de pagar por esta roupa? Meu consumismo não tem limite?
Ora quem faz estas vendas de coisas em segunda mão é quem tem olho para ver ali mais do que uma coisa fora de moda, que já foi comprada e usada por não sabemos quem, mas ver ali uma possibilidade. O que penso é se isto confirma ou desmente as minhas qualidades para as compras – comprei, ofereci, compro de novo? Tudo é cíclico e mutável, e o segredo está cá – em mim. Desengana-te que esteja nos outros.
E para aqueles a quem esta partilha fez questionar o valor das suas ofertas para África não pense assim, porque para muitos de nós, aqui, sejamos simples compradores do Xipamanine com a nota de 50 meticais na mão ou mais sofisticados e caros compradores da Somershield é assim, graças à calamidade que nos vestimos à africana – orgulhosamente bem!
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