sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Não é doença, é feitiço


Estou em casa, está calor. O calor cheio de humidade que torna a respiração pesada, os movimentos lentos, a pele pegajosa, a boca sedenta. Estou deitada numa esteira no chão, perto da varanda, mas nem uma brisa se sente. O calor dá sonolência, não apetece nem levantar a cabeça.
Da sala vem o som dos tambores, na conexão à internet que deixei ligada corre o som da rainforest de um site turístico de Madagáscar, os sons misturam-se com os poemas de Vinicious na música brasileira que toca no leitor de CDS. A música aparece e desaparece em random misterioso, o tambor aumenta, os pássaros competem em composições surpreendentes, o vento parece mexer com as folhas das árvores.
Mas não é assim, não há nem uma brisa, repito, e neste apartamento na baixa da cidade não é comum que se oiçam pássaros.
Mesmo assim pelos olhos entreabertos parece quase que os vejo. Cores brilhantes, movimentos que arrastam os tons, que se misturam na presença brilhante das ondas de calor. Que também podem ser o reflexo da capulana colorida que serve de cortina… mas que apenas pode agitar-se com a brisa imaginada das praias de Itapoã no CD que continua sem parar.
Não consigo levantar-me. A Laurentina preta que bebi há algumas horas adormece-me ainda os lábios. Cheira a incenso de alecrim que queima às sextas-feiras na casa dos vizinhos de baixo. Vindos do corredor consigo ouvir os sons graves e ritmados do pilão a bater o enorme almofariz, esmagando farinha de milho ou amendoim. A chamada para a oração, da grande mesquita da baixa, uma das mais importantes da cidade, intensifica o exotismo da personalidade de Maputo. Eu estou deitada e o meu pensamento divaga. Parece que oiço meu nome, em vozes graves, bem próximo do meu ouvido. Perece tão real, mas o meu corpo não reage em conformidade. As quatro crianças da vizinha do lado correm e riem. Gritam: - Ei, pára com isso! Deixa a água suja aí pá! Vou-te bater eu!!
O tambor aumenta, parecem mais do que um, já misturo os sons dentro da cabeça e por momentos parece que não oiço nada, como se a cabeça estivesse em algodão, os sons muito abafados. Respiro com dificuldade, e parece que adormeço. Os sons continuam presentes, mas o corpo parece perder sensibilidade, mal o sinto. Volto-me sobre o ombro direito, o toque da pele na esteira é áspero, quase arranha.
Oiço a empregada a falar com alguém na porta, o tambor pára e de novo recomeça. Está calor. Apertada na entrada estreita da porta, passando a custo o seu corpo enorme entre o frigorífico e o espanta-espíritos que fiz com conchas e fitas de seda, ela avança. Oiço as conchas em choque, oiço o pau da chuva cair do seu equilíbrio precário na cesta de ráfia. Na entrada para a zona onde durmo - neste estúdio minúsculo que desconfio que não tenha sido feito para habitar não há muitas portas - tintilam as moedas do cinto de danças do ventre que está aí pendurado.
Parece que a minha casa é feita para cuidados, exige lentidões e olhos suaves nos cantos e nas esquinas, está cheia de dependurados e equilibristas que se despenham no solo ao menor descuido.
Descuidada ela avança. As missangas penduradas debaixo da máscara Makonde caem em três movimentos bruscos.
Eu estou deitada, está calor e quase não levanto a cabeça. Em toda a casa coloquei almofadões e esteiras no chão, há uma única cadeira, feita de sândalo, para mim bela, e decorativa. A vizinha ajeita suas volumosas formas na cadeira perfumada, olha-me:
- Então vizinha, soube que tá a sofrer de febres? Ysh, senhora, sabe que anda por aí coisas de mal, muitas pessoas com febres, minha prima também, depois nunca mais levantou. Mesmo aqui no prédio senhora de terceiro andar, conhece aquela clara que tem aquele marido monhê, sabe não é? Sim, então, mesmo ela teve febres, mas bebé dela, nasceu mês passado vizinha viu? Não apanhou. Mas aquele marido parece tem negócios de África do sul que não vão bem. Talvez ele pediu ajudas erradas, senhora conhece essas coisas, né? Sim, pois, então é isso talvez foi isso. Aceito um chá vizinha. – sem necessitar de uma palavra minha a empregada prepara chá - Mas eu estava muito preocupada, mesmo porque faz dois dias que nem lhe via sair! Vizinha assim podia avisar. Avisa! Porque eu estou aqui, posso ser sua mãe, sua família para lhe ajudar, né vizinha? Eu mesmo aqui na porta passava e estava preocupada, hoje vi chegar empregada então vim lhe ver.
Eu olho-a apenas, acho que tento sorrir. Tenho febre há três dias, ou serão quatro? Os medicamentos não parecem surtir qualquer efeito, a febre não baixa e tenho momentos que parece que quase deliro. Acho que D. Matilde, a vizinha do lado, nunca tinha entrado na minha casa, mas o à vontade com que o fez parece indicar que sim. Oiço o que ela diz, de vez em quando, entre os bates de tambor solta uns yée yée bem dispostos. Depois de falar toma o chá. Olha à sua volta, admirando com curiosidade as coisas nas paredes, nas prateleiras. Bebe o chá e sorri para mim.
- Bom, vizinha, eu já fui, obrigada pelo chá. Suas melhoras.
- Sim, obrigada pela visita, eu estou a tomar medicamentos, febre vai passar.
- Mas vizinha, medicamentos que disse? Assim comprimido mesmo? Vizinha não devia, está cá já alguns anos já devia saber isso aí não é doença vizinha – é feitiço.
E depois? Como posso dizer? Posso dizer que depois melhorei.
O que me move e me alimenta os dias aqui continua a ser o exotismo quente e os ritmos mornos dos dias. Por isso a febre no fundo não passou, para mim África é doce.
Pára o tambor, ele aparece no quarto:
– Ei, tem bom som hoje na rua d’arte, bazamos? – eu sorrio:
- Sabes, eu ainda me sinto um bocado mal.
- Mas ouviste a vizinha, não é doença isso, é feitiço! Tambores são terapêuticos sabes?
- Ya… sei.

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