segunda-feira, 5 de julho de 2010

Crise não zanga


Em Portugal sonha-se com África.
Em Moçambique sonha-se com a Europa.
A Ásia sonha com a América… e todos vivemos sonhos intercontinentais.
O Homem foi feito assim, que podemos fazer? É da nossa natureza.
Não é. Se fosse a nossa natureza a falar, a nossa vontade de investigar lá fora, de sair do nosso canto seguro e certo ainda vivia em cada um. Em Portugal haveria actualmente mais aventureiros, mais pessoas com a coragem de viajar, mesmo que seja viajar no risco de um investimento ou no perseguir de um sonho. Viajar como um modo de vida, no sentir leve dos dias, na expectativa fresca dos encontros, na flexibilidade apaixonada de seguir uma ideia, um impulso, uma paixão.
Se fosse resposta à nossa natureza a nação de aventureiros, de poetas, de criadores, não estaria transformada em acomodados corpos, jovens, mas roídos de mentes bolorentas, receosas, banalizadas, tristes, fatalistas, cegas.
Visitei Portugal e lá não encontrei a tão famosa crise, sobre a qual lia nos jornais.
Encontrei casais jovens a viver em boas casas, com mais de dois quartos, a viajar em mais que um carro, a ver filmes importados no enorme plasma, a sair para férias no Brasil com final de ano marcado na neve, a oferecer às crianças Playstation e os últimos modelos de telefones.
Não tenho nada contra o dinheiro, nada contra as pessoas gostarem o que ganham no que lhes pode dar mais prazer, nem que isso – misteriosamente para mim - passe por acumulação de bens e ostentação de riqueza. Não censuro. Há muitos caminhos para a felicidade e a mim apenas me cabe perseguir o meu.
Mas o que me incomoda, o que me faz lamentar, pensar, escrever sobre isto, é o quanto é psicológica esta ideia da crise, da má situação financeira, da recessão. Não me interpretem mal, não digo que não haja famílias a viver mal, e cada vez pior, com dificuldades, com despesas, com dívidas… mas, não será pelas razões erradas? Quero dizer, não será verdade que há alguns anos atrás muito menos pessoas viviam com tantos bens? Não é psicológico? Não foi o conceito de estilo de vida considerado normal, acessível a todos, o que mudou?
Estou a viver fora mas mantenho sempre contacto com Portugal e desde há bastante tempo que os amigos me falam com pesar do fantasma “crise”. E com tom de sofrimento e lamento do destino – tom bem português por sinal – no estilo olhar cabisbaixo a dizer: «tu é que tens sorte de viver em Moçambique que não sabes como vão as coisas por aqui!».
Eu? Tenho sorte? Bom, sim, disso eu sei e já falei da minha estrela muitas vezes aqui, mas não foi a sorte que me trouxe a felicidade. Nem a mim nem a todas as pessoas que em Moçambique vivem com menos de um dólar por dia e sorriem; vendem tomate nas bancas e sorriem; todas as crianças que se vestem de andrajos, pedem esmola na rua, e sorriem; todos os mutilados de guerra que se movimentam em cadeiras de rodas improvisadas e sorriem; todas as famílias que vivem amontoadas nas casas feitas de caniço e sorriem. E, embora fosse Natal, eu visitei o meu país de origem e as pessoas não sorriem…
Na Europa para se aparecer na televisão numa peça sobre as dificuldades de vida na actual situação económica, basta ter uma infiltração no tecto da casa, ou baldes a aparar a água na cozinha. Não digo que não são situações difíceis, ou que não merecem a atenção das pessoas, do estado, dos governos, da união Europeia , mas para quem “tem a sorte” de viver em Moçambique essas peças são quase risíveis… e para quem vive aqui – embora existam muitas formas de viver eu falo agora dos que habitam neste país por paixão, por identificação, por empatia – falo dos que aqui, sentindo tão de perto a vida das pessoas que se relacionam de forma tão próxima com as nossas necessidades mais básicas se inspiram nelas e vêm que aqui não se fala em crise porque a ela estamos habituados. Porque não seguimos o sonho americano, não vivemos com o triplo do nosso vencimento conseguido em empréstimos e pago três vezes em juros e deixado para saldar no tempo de uma vida ou quem sabe algumas gerações.
Não critico o acesso ao lazer das viagens, ao conforto da casa, ao investimento num transporte seguro, familiar, ou desportivo, prazeiroso, nada disso. Mas não me falem por favor da crise.
A crise deixei de a procurar porque agora sinto bem onde está – nos olhos de quem olha baixo e no seu campo de visão cabe apenas o seu umbigo; nos ouvidos de quem numa notícia de catástrofe ouve mais alto o número de baixas de pessoas de nacionalidade portuguesa; na boca de quem sente defende a pureza da língua e a supremacia dos sabores lusos – a crise está aqui, dentro da nossa cabeça.
Sim, podem dizer que tenho a sorte de viver em África, mas a minha fortuna é a de querer ver mais do mundo e de com isso saber que a sorte está lá - onde a quisermos encontrar. Olhar para o globo, ver no mapa os buracos nos caminhos de África, a falta de cadeiras nas escolas, a ignorância nas questões da saúde, a instabilidade na segurança, a violência na liberdade de expressão e o desrespeito nos direitos humanos. Ver para lá do Mundial do futebol, dos safaris, dos animais selvagens, da pertinência dos países CPLP na divulgação da língua, dos números nos mortos por malária ou HIV, ver mais longe.
Olhar para o lado e ver. Ver as pessoas que apesar da muita crise sorriem.
E como se diz por aqui: Tuga, smila lá mano, não zanga!

6 comentários:

  1. hehehe! grande texto!!!...inspirador i would say!!! post it in Portugal!!! bjinhos!!

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  2. Para já está brutal, a seguir está estupendo depois está verdadeiro!!! Muitos beijinhos and don´t you ever stop!!!!

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  3. Soube-me bem ler este artigo. Soube-me bem a franqueza,a verdade, a realidade!Soube-me bem constatctar que muito se chora por nada,em vao, porque ate as lagrimas deixaram de ser "sentidas". Porque os bens materias passaram a encher os coracao e a alimentar o ego. Sim, aqui os sorrisos sao espontaneos ,apesar da pobreza sentida e vivida diariamente,talvez porque embora pobres, nao somos pobres de Espirito.Porque mesmo com pouco, constatamos que a maior davida da vida e estar vivo.E viver... sorrir:) aos vivos e chorar os mortos.
    Obrigada, por mostrares que vida aqui nao tem estrelas de sorte,aqui lembramo-nos de olhar para as estrelas.
    Parabens pelo teu artigo :) :)

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  4. muito obrigada :) sim, às vezes esquecemo-nos de ver as estrelas! mas elas estão lá :)

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  5. Joana,

    Na impossibilidade da contactar pelo seu e-mail pessoal, peço autorização para usar este seu artigo no meu blogue em Sol/adri.

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