Vivi em Moçambique tres anos, e escrevi, escrevi muitas cartas (estas publicadas no Jornal SOL, edição africana).
quinta-feira, 28 de outubro de 2010
Da tolerância
Nos meus olhos o reflexo dos brilhos e no ar o cheiro de incenso, na boca a dormência morna do piri-piri e nas minhas mãos a tua. Estás aqui. Partilhamos.
Estou sentada, dançam há mais de uma hora na arena sagrada. Por tantas vezes já me apeteceu fazer o mesmo!
Conheço o suficiente os hábitos do extremo oriente para saber que não funciona assim. Tudo se faz com regra e formalidade. Espero.
Estivesse eu em África e já teria saltado para lá, aliás teriam vindo buscar-me!
Mas… espera, eu ESTOU em África!
Não, não estou. Aqui é um outro lugar.
Em Maputo há um festival. Sabias?
Eu não sabia. Sou estrangeira.
Somos sempre, mas a sensação é nova, temperada. É quente é fria, é doce e acre, de sabor modelado pelo acompanhamento: um molho, um tempero, um refresco, um chá, água Vumba ou… eu levei um amigo.
Maputo é cidade diversa, escrevi muitas vezes. Sim, todo o tipo de pessoas, de nacionalidades, de origens, de culturas, de cores, de credos, de hábitos, de actividades, de filosofias, de práticas, de músicas, de comidas, de bebidas, de livros, de medos, de fé…
Maputo é um elixir de tolerância. Mas é preciso gostar de tomá-lo.
Por todo o lado o corpo entrega-se à observação, à escuta atenta. E enquanto estuda, no seu existir esforça-se. Trabalha na descrição absoluta do gesto, no cuidado no caminhar, na suavidade dos movimentos do olhar.
Mas é inútil, sou estrangeira aqui, e os olhares perseguem-me. As crianças fogem, ou olham-me descaradamente com o à vontade que só a ingenuidade assume. Os mais velhos sorriem. As mulheres olham-me em tempos pausados, estudam-me, desdenham. Os rapazes mais novos acenam, os olhos sugestivos e eu… eu delicio-me! Sem apanhar avião ou passar fronteira eu entrei num outro mundo, e acontece aqui mesmo, na rua entre a minha casa e o lugar onde trabalho.
A dança continua em energia espiralada.
Talvez por cortesia, porque os povos da Ásia têm destas coisas, convidam a dançar:
- Sim! – levanto-me.
- Ah! Bom… ok, espera, vou perguntar… se calhar não podem porque para nós esta dança é sagrada, e… por exemplo nós não comemos carne de vaca…
- Eu não como carne nenhuma. Nem de peixe.
- Ah, ok…
- Mas se não podemos não tem importância, é só curiosidade nossa.
- Vou perguntar…
A música repetida é tocada ao vivo, vários instrumentos em ritmos que lembram os sons afro-brasileiros, e duas vozes, uma masculina e uma feminina que cantam o que me parece um mantra. Dançam. Todos vestidos de brilhos, tradicionais Chania Choli para as mulheres e nos homens o Dhoti Kurta. Repetidos círculos em volta do altar central, em frente do grande altar onde nos olha Shiva montada num tigre, luzes e mil cores.
A dança é repetida, de inicio igual, aos poucos com variações, aumenta de ritmo e viaja até ao… transe. É dançada por mulheres, homens e crianças, tem palmas ritmadas e eu não resisto a acompanhá-las, pode ser sentada mas eu danço!
Ele regressa:
- Pois, parece que dançar não podem, desculpem mas para nós é muito especial esta dança, percebem?
- Claro. No problem.
Eu quero fotografar mas não me apetecem os flash, eu quero copiar os movimentos mas o corpo já não pensa, só faz, bate palmas, e palmas, e palmas.
Passa um homem carregando caixas com paus vermelhos, todos correm a agarrá-los.
- Porque dançam com os paus?
- Hum… porquê? É igual a antes, mas em vez das mãos, para bater usamos os paus...
Não acredito mas não estranho, na verdade mesmo eu que fui muitas vezes à igreja, por exemplo, pouco sei de algumas coisas que lá se fazem!
- Continuem a bater as palmas, vocês estão a apanhar o ritmo! Daqui a duas semanas podem vir dançar!
- Gostariam de comer alguma coisa? Bolinhas com especiarias, são muito boas. É a primeira vez que vos recebemos na nossa casa, por isso gostava de oferecer algo.
A educação nestas coisas é assim mesmo: aceitar, provar, agradecer.
Assistimos a dança Garba, ou Dandia Ras, a tal que se usa com os paus vermelhos, e parece que não se usam apenas como quem bate as palmas. Há os paus vermelhos e outros, decorados com cores e brilhos - tem origem na cultura Gujarati e nas lendas Hindus, uma que se refere a celebrações de colheitas, outra aos guerreiros na batalha entre Ram e Ravana no Ramayana. É o que celebramos aqui, a vitória do bem sobre o mal.
Uma das mulheres dança com um pote de barro, vermelho na cabeça:
- O pote Garbo! Tem dentro uma vela que foi acesa no primeiro dia do festival e que se deve manter assim durante todos os dias do culto.
A mulher dança concentrada, olha-me, conheço-a! Acena para mim.
O pote representa a mãe deusa.
A dança Dandiya Ras é feita à volta deste pote, adoramos a mãe.
Maputo é um exercício para a tolerância.
Sim, porque nós temos tendência para por as coisas em caixinhas não é? Para ver a vida com rótulos, não é? Mas é isso que queremos mudar. Não é?
Quantos partilhamos bairro, prédio, alguns mesmo flat, com pessoas completamente diferentes? Todos somos diferentes, e basta olhar o outro assim, pensando no que é estar no lugar dele. Basta isso. Basta olhar para as pessoas e não ver comunistas, monhés, muçulmanos, moluenes, frelimos, pobres, mulheres, prostitutas, makondes, chinas, catorzinhas, rongas, mulatos, assimilados, engenheiros, canecos, whites, buers, ministros, americanos, serventes, swazis, cristãos… basta olhar para as pessoas e ver… pessoas!
Quantas pessoas em Maputo se deslumbram com a novela “O caminho das índias” e criticam o cheiro “a loja de monhé” do incenso que queima na flat a seu lado?
- Nós não queremos que cometam um pecado.
- ?
- Foram vocês que pediram para dançar? Esta é uma cerimónia religiosa, antes de começar fizemos a purificação do espaço, a mãe de santo veio limpar tudo e por isso não gostaríamos que vocês… é que se subirem ali podem cometer sem saber um pecado e nós não queremos isso, eu pelo menos não quero.
Vivemos em comunidades, é natural, mas podemos viver em muitas, saber, conhecer, partilhar o nosso mundo no mundo do outro.
Não tenhas medo, não é por usares capulana que és atrasada nem é o perfume hugu boisse que te dá sofisticação.
Fui visitar o templo hindu de maputo e há muito tempo que não me sentia tão estrangeira aqui. Entrei e viajei. E não foi só dentro de mim, foi na cara das pessoas que vi onde estava e o quanto era estranho que eu estivesse lá.
Nava significa nove e rati significa noite. Durante nove noites a deusa mãe é adorada nas suas três formas: Durga, Laxmi e Saraswati. Nas primeiras três noites Durga é admirada na sua força e ferocidade. Nas três seguintes Laxmi é convidada para purificar e limpar a mente, finalmente Saraswati para o conhecimento superior. No final das celebrações o ego está destruído, e simbolizando isso mesmo uma efígie é queimada, no décimo dia, o Vijayadashmi, dia da vitória, dança-se a dança da alegria, Rasa, de Shree Krishna e os Gopis.
Não sabias? eu também não.
Fui visitar Shiva. E como anima!
O festival Navaratri é celebrado à noite, vivemos tempo suficiente a dormir sem saber, é tempo de acordar!
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário