quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Peneira vida


Quando cheguei a Moçambique montei casa, e nas práticas locais casa envolve empregada, e guarda, e jardineiro… E nas práticas locais ser senhora tem regra, faz assim, e assim… e ouvia eu todos os dias:
- Mas senhora… Senhora não sabe afinal? – seguia-se um olhar de soslaio, um desdém que afirmava categoricamente, “esta senhora nem sabe ser senhora!”
E cada dia sentia mais forte este meu destalento para senhoriar casa em África.
- Senhora, não tem pilão aqui em casa.
- Senhora, não tem ralador de coco aqui em casa.
- Senhora, não tem fogão de carvão.
- Senhora, não tem esteira….
A cada uma destas afirmações seguia-se a minha expressão aberta, a minha interrogação escandalosa. Eu se na grande maioria das vezes não sabia de que falava Leontina, numa minoria das vezes pensava que sim e arriscava e na totalidade destas tentativas eu… falhava.
- Senhora aqui nessa casa nem peneira não tem!
Eu não sabia. E na verdade como nas mais profundas aprendizagens da vida o entendimento de tudo isto só chega mesmo mais tarde. Sim, claro que com a ajuda da empregada a casa passou a ter todas estas coisas, mas na minha cabeça a função delas era… misteriosa. Não tanto a funcionalidade, um pilão de inicio estranha-se mas depois vê-se bem para que serve. Ou não… um utensílio em casa africana não é apenas isso. O que me parecia ver nos olhos de Leontina é verdade, para ela uma casa sem estas coisas nem é casa!
Visitei Nampula. Viajo sempre.
E em Nampula encontramos outro povo.
O povo da floresta, que tece com ervas a vida.
O povo dos Grandes Lagos, que peneira entre ervas seus grãos de vida.
O povo do sorriso que habita muito Moçambique. Espalhado pelas terras, junto aos lagos e na costa, entre as melhores comidas e as magias mais densas.
As ervas, os frutos, as sementes.
- Aqui temos medo, joana. Homem que viaja para Nampula para trabalhar não regressa, macua engarrafa pa!
Claro que me falam da beleza, da beleza das mulheres.
Das peles claras na misturas das gentes, nos sorrisos rasgados, no arrastar misteriosamente sensual de um chinelo, no manear lento da anca.
Macua trabalha as intimidades com óleos de coco, e os músculos mais secretos enfeitiçam os homens. Aqui diz-se assim.
Macua não trabalha, banha-se e trata-se com pós de mussiro – pó feito no esmagar de um arbusto - e outras ervas mágicas.
Nos rostos as máscaras de beleza emitem os sinais.
Nas ruas de Nampula passam as mulheres, chinelos arrastados, capulanas na cintura, trouxa na cabeça e no rosto… a máscara branca do mussiro.
Nas ruas de Nampula as mulheres passam a sua mensagem, não é preciso falar ou cantar, olhar com sugestão ou acenar o atrevimento, não é preciso. Basta saber no rosto desenhar a máscara de pó, e dependendo das formas e da opacidade das cores e das quantidades comunicar. Sim, eles sabem.
São beleza e comunicação, com o homem marido, com as amigas, com o homem amante… dão sinais da disponibilidade para o amor, do estado físico, falam das vontades e das indisponibilidades. Falo das íntimas, claro. Macua é intimidade, é fogo no amor.
E dizem que são as montanhas que enfeitiçam as gentes.
As montanhas enquadram a paisagem feita de longos coqueirais… ainda me deslumbram os topos altos dos coqueiros, que doiram ao sol.
O calor é seco. E na rua principal de Nampula eu caminho.
O sol brilha o azul do céu. Não sei como é mas o ar parece assim, brilhante.
Em frente ao hotel uma criança pede esmola, está no chão, as pernas parecem braços e são inúteis para caminhar, às mãos parece que nenhum pulso se liga e são inúteis para agarrar. Ele arrasta-se no chão. Olha-me. Apenas. Eu olho de volta. Tiro uma fotografia, ele não sorri.
Visito nos mercados os lixos e os peixes, o tabaco enrolado e as longas bancas de missangas de plástico, todas as cores e combinações. As vendedoras de carvão, longos corredores de chão enegrecido pelo pó de carvão. Neste chão sentam-se as mulheres que carregam crianças. As crianças mulheres vendedoras, sorriem para mim.
Vejo nos mercados os objectos de casa… aprendo, aprendemos sempre.
Nas bancas ao fundo vendem ethekwa.
Feito de tiras finas raspadas das canas de bambu. As tiras entrançadas no fundo, terminadas com o muyepe, um pau bem raspado, cosida no final com o arbusto hururi.
Na ethekwa a mulher transporta e conserva as sementes, os frutos e cereais. Nela ela escolhe o arroz e o milho, a mandioca. Aqui neste objecto vemos o centro da terra, e sem ele mulher não é mulher de verdade, precisa de vizinha, de irmã, de mãe… precisa de perder homem para segunda e terceira mulher.
Aqui começa a vida, aqui se iniciam os jovens.
Ethekwa é abutre e milhafre.
Olaquiwa ensina a todos os jovens como se faz, ensina a entrelaçar no centro as tiras, ensina sobre o centro da terra, sobre a estabilidade do lar.
E quando o homem chega a casa e vê o cântaro de água tapado com ethekwa e com o pau que amassa a caracata por cima ele sabe. Se a peneira está levantada ou ao contrário, pendurada ou no chão, ele sabe. Ele sabe da comunicação do amor. São as palavras do desejo que se revelam assim. Os desejos e os corpos, a indisponibilidade para o sexo, o momento das luas, o convite ao amor.
Nos ritos femininos aprendem as mulheres a falar a partir deste objecto.
Os bebés conhecem cedo o toque das tiras entrançadas. Depois de ser protegido com o banho wakulelia muana a criança deitada na ethekwa é lançada aos quatro pontos cardeais, autorizando o casamento; ou trocada entre mãos saindo e entrando na casa - protegendo dos espíritos.
Está presente nos primeiros passos, quando a criança tarda a começar a andar é sendo arrastada em cima das tiras entrançadas que começa infalivelmente a caminhar.
Está presente na morte, é com ela que abrimos a cova, é com ela que lançamos as terras para tapar o corpo.
Está presente na magia, se o homem é abandonado, é aqui que se misturam os medicamentos tradicionais, durante três dias sivela (gostar) são misturados, e ao fim desse tempo o coração da mulher palpita e nele o desejo de voltar para casa.
A ethekwa é o lar, simboliza a estabilidade, toda a casa tem uma.
Na banca do fundo vendem peneiras, como a que faltava na minha casa…

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