Vivi em Moçambique tres anos, e escrevi, escrevi muitas cartas (estas publicadas no Jornal SOL, edição africana).
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
Lembras das ruínas?
Ele canta:
“Deixa-me. Deixa-me ao menos subir aos coqueiros, beber a sura e esquecer de ti.”
Eu rio. É mentira, claro. É mentira que me ame, que sofre por não me ver. É mentira que sou especial para ele, que o faço alterar seus dias, seus hábitos, seu sonhar.
Sim, é mentira, mas mesmo assim eu sorrio. O seu beijo é doce, e eu aceito-o.
No prédio em frente cruzam-se nas escadas as crianças barulhentas e as mulheres de salto alto e cabelos falsos, cor de laranja. Sobem os degraus rapazes em fato formal, perfumados, na orelha esquerda um brinco brilhante. Eu olho, eles olham de volta.
O vento venta mais forte. Chega-me o cheiro da xima cozida na panela no fogão de carvão na flat mesmo ao lado. Cheira também a caril, acho.
Do terceiro andar um saco de lixo dependurado no estendal, pinga.
Ouve-se o som do ar condicionado a trabalhar na parede mesmo à minha frente. Eu estou cansada.
Espero. E escrevo.
Estou de visita à casa onde vivi mais de um ano, na baixa da cidade, e agora que me mudei as opiniões dos meus amigos ecoam em mim… sim, vivia numa zona… como dizer? parecem quase ruínas!
Lembro-me de ir visitar contigo as ruínas. Lembras-te?
Nunca escrevi sobre isso, acho que me tinha esquecido… viajámos a Xai-xai, estava ainda há pouco tempo em Moçambique. Viajámos para ver a praia, estava frio, avançámos pela areia mais macia, pelos caminhos mais secundários, fazíamos manobras para regressar e vi ao longe a ruína.
Um hotel enorme, frente ao mar… abandonado. Eu nem hesitei, pedi-te a câmara e avancei, subi para a prancha da piscina olímpica e sonhei com os mergulhos, as pessoas sentadas à volta em fatos brancos e chapéus coloniais. Há lugares que nos fazem viajar, é assim mesmo.
Avancei para o edifício principal, todo o rés-do-chão fechado, vidros ainda inteiros, algumas portas e entradas fechadas com tijolos e cimento.
Avanço a balbuciar coisas, aposto. Entusiasmada com a descoberta. É lugar abandonado, mas cuidado, alguém guarda este lugar, está varrido o corredor, a maioria dos vidros estão intactos. Num deles a frase que me alimenta o vaguear criativo da mente “ help me I am still alive!”
Eu disparo as perguntas da mente fértil:
- “Que terá acontecido, achas que é piada esta frase? Isto é enorme! Linda a vista, porque estará assim? será de quem? O que achas? Vamos explorar mais, eu adorava saber, é fantástico, já viste?”
Pergunto mas não procuro as respostas, procuro o sentir, e mesmo que me respondam que pertence ao senhor Silva, de Maputo, e que é por razões de licenciamento da obra, ou por deslocação da família, ou por fraca exploração turística do país… que são estas as razões porque não funciona, eu não acredito. Para mim não é assim. Não pode ser.
Avanço ao primeiro andar.
Avanço a imaginar as estórias naquelas janelas, nas banheiras, no bar.
E viajo nas ruínas, no abandono da protecção de vida, que é uma casa.
Para mim casa é presenças e casa abandonada é sempre estória… procuro-a. E fantasio, sim.
Não sei se é o prazer de contar estórias que me vem do teatro, mas desconfio que seja o contrário. Mas na verdade é assim, não posso ver uma ruína sem viajar em possibilidades.
Sim, lembro-me.
E mesmo assim, como um lembrete que toca num celular, depois da memória eu lembro-me: aí ainda estávamos juntos. Pois era.
Juntos viajámos para o Xai-xai, anterior João Belo, como homenagem a um antigo administrador deste distrito na província de Gaza.
Estava contigo.
Chapinhei contigo nas lagoas e cheirámos juntos os frangipanis. Sabes, quando provei pela primeira vez anona foste tu que ma deste. Sim a vida é feita de conquistas. De perdas, de danos.
Não sei. Não é o meu sentimento que fala, nem é para ti que escrevo. Mas a memória existe. E se não esprememos nela a doçura com medo do contágio dos sabores amargos que possa trazer, então desperdiçamos possibilidades.
Na ruína do hotel viajei e nas traseiras encontrámos os guardiões. Lembras-te?
Dois homens sentados. Dois homens que pareciam dividir uma pequena divisão.
Estão sentados nas cadeiras meio destruídas que aqui em Moçambique, numa espécie de tradição, são entregues aos guardas, e partilham comida. Alimentam a minha fantasia sobre o lugar e às tuas perguntas dão poucas ou nenhumas respostas. Parece-me que sim, que falaram no senhor Silva de maputo. E mesmo assim eu viajo: mas aqui, o que terá acontecido aqui?
Estou na casa onde vivi um ano, na baixa da cidade, olho para o lado e ele ainda canta:
- Deixa-me, deixa-me esquecer-me de ti…
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Joana, bom te ler!
ResponderEliminarAbç
obrigada! um beijinho
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