Vivi em Moçambique tres anos, e escrevi, escrevi muitas cartas (estas publicadas no Jornal SOL, edição africana).
sábado, 28 de agosto de 2010
Morangos na Namaacha
Encontro-a na Namaacha, apresentam-nos:
- Olá. Eu estou aqui porque alguém me chamou, é isso eu faço, eu falo com as pessoas. Olho-as e vejo. E posso dizer-lhes coisas.
Oiço-a, tem na pele a cor misturada, quase laranja, de alguns sul-africanos, tem lábios bonitos, num constante esboço de sorriso, olha-me com olhos redondos, brilhantes, gelatinosos.
- Por exemplo tu. Tens um coração suave. Sorris com facilidade, entusiasmas-te com facilidade…
Sinto cada palavra como se não pudesse impedi-la de entrar assim pelos meus olhos, e é o meu corpo que responde. Como se cada coisa que diz acontecesse em mim.
- Mas também é fácil chorares, ficares profundamente triste… agora estás triste.
Sinto uma lágrima a rolar-me pelo rosto, fico quase surpreendida, afinal estou assim tão triste? Parece até que não sabia.
Na Namaacha encontro a vidente.
Visito a vila pequena, naquela pontinha de Moçambique que parece uma cauda de animal, espetada em terras vizinhas. Aqui é zona de fronteira, com Suazilândia, com África do Sul.
A primeira vez que me falaram da Namaacha disseram-me que tem morangos. Eu duvidei:
- Morangos aqui? Nada. Isso devem ser coisas inventadas pelos sul-africanos.
- É verdade! E temos também um licor.
Eu duvidei, e em visita a Portugal, acompanhada por um moçambicano, foi um português que me confirmou a estória.
Visito a cidade de Óbidos e entre as muralhas escolho Ginjinha da mais tradicional, mais para minha delícia que para interesse do turista, o visitante comenta:
- Isto é tipo licor feito de fruta, não é? É como os Morangos da Namaacha.
- Pois, pois, até me provares isso eu não acredito nos morangos da….
O dono da tasca castiça ouve a conversa:
- Disseram da Namaacha? Namaacha em África? Em Moçambique, ali perto de Lourenço Marques? Esse licor…
No olhar o tempo parado de quem desenterra uma memória.
- Vês? Não te disse que há? Agora que é um português a dizer já acreditas?
Falo baixinho por respeito:
- Eu não quero acreditar, quero provar!
Hoje visito a Namaacha e aqui somos recebidos pelo tio.
- Vamos buscar os morangos da Joana!
Saímos, no quintal está um pastor alemão que rouba de imediato o meu olhar. Corre para mim, salta, é tão parecido com o cão que tive já tive tão perto de mim que eu não quero acreditar, agarro-o no focinho e olho-o nos olhos… é igual. No olhar a doce timidez de quem é reconhecido… e para mim é ele. Olha-me meio espantado que o reconheça. Acho que choro mais uma lágrima.
Na Namaacha vejo a cobra na gaiola de ferro. Na Namaacha como o bolo de chocolate e kiwi.
Sou recebida na casa sem água, com um buraco no quintal, três cães no terreno, um gato, uma cobra e amigos. Na Namaacha conheço mais dos boisses tugas que abundam nesta terra.
Aqui visito as cascatas. Eu sou água. Aproximamo-nos do local da minha maneira preferida – seguindo os locais. Seguimos um grupo de jovens e crianças que carrega roupas na cabeça, falam connosco, e do que dizem pouco é português. Mas entendemo-nos, seguimos os seus passos. À minha frente vejo as montanhas, entre as montanhas as pedras polidas pela água, brilhantes ao sol. Entre as pedras largas passa água, pouco mais que riachos. Eu descalço-me e desço para as pedras, estão quentes. A água é turva e verde, fresca. As crianças descem também para as pedras, com as roupas para lavar, e avançam mais, e mais, e mais. Eu sigo-as, só mais à frente vemos o lugar onde a água se precipita, e lá em baixo a lagoa.
Estamos no lugar da água. Eu sinto-a.
Apetece. Apetece precipitar um salto. Um salto na água das cascatas, como os que nos vendem os romantizados filmes americanos.
Mitos. Em poucos lugares de África me foi possível mergulhar em águas doces. Aqui também não.
Na Namaacha vejo as relações dos homens e as ausências das mulheres. Os desencontros.
Visito as casas que ardem por dentro, sinto o cheiro enjoativo do fumo.
Vou às pequenas lojas que expõem tudo nas prateleiras arrumadas; lâmpadas “Europa”; balanças de pesos (como as que a tia Custódia usava na venda da Loureira); garrafas médias de cerveja. Leio no rótulo de cerveja moçambicana “Raiz”.
- Esta não conheço, levamos?
- Sabes, eu tenho medo dessa cerveja, melhor não!
Na Namaacha vejo as casas cheias de estórias abandonadas em ruínas, habitadas apenas por lixo, preservativos usados, garrafas vazias, colchões imundos… Nas escadas, cuidadosamente, alguém tratou plantas. Dois vasos de terra amanhada e hidratada. No meio do caos a vida parece surgir, eu tenho esperança.
Sobre África alimentamos muitos mitos, um deles é o do clima, que acreditamos sempre que é quente. Mas aqui, nesta África, o clima aqui é temperado. Na Namaacha ameaçam-nos com frio, e confirmam – o tempo dá para morangos.
Mas é só agora, quando finalmente visito a Namaacha e procuro o licor batendo ao portão de ferro da D. Graça, e só quando vejo que o portão está decorado com azulejos da Nazaré e do Ribatejo, e quando sei que acabou de chegar de Portugal… só aqui sei que afinal eu não tenho razão, estes morangos são… é disparate querer saber de onde são.
Namaacha é terra de lendas e eu já nem as conto, sinto-as.
E como nos amores precipitados, que da frescura dos primeiros frutos não conseguimos fazer nada… deste fruto não cheguei a provar o licor.
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