Vivi em Moçambique tres anos, e escrevi, escrevi muitas cartas (estas publicadas no Jornal SOL, edição africana).
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
Verão moçambicano
Está calor. Tenho no corpo a sensação infantil das férias.
Para mim verão é isso, é expectativa. Dá-me uma dormência respirada, o bafo de calor. O suor que pinga sempre leva-me a banhos que me lembram as piscinas da infância. E mesmo que trabalhe todo o dia, nos mais pequenos intervalos vou lá para fora, e respiro as promessas que o calor traz no ar.
Para mim no verão todas as noites são… novas, apetece estrear cada anoitecer com uma bebida que veja o pôr-do-sol vermelho que só o ferro de África nos dá.
É Verão, nas últimas semanas as chuvas vêm de noite e quando os trovões zangam o céu não resisto aos banhos da água que cai precipitadamente quente… a cidade fica alagada e ganha correntes… dizem-me os amigos que aqui nas terras dos feitiços os rios podem ser pessoas e as pessoas podem ser rios… dizem que o Rovuma é capaz de fazer assim mesmo, descer da distante fronteira do norte e na cidade fazer-se respeitar.
Chove e tudo fica… pronto para… acontecer.
Verão é paixão. Para mim é.
Verão moçambicano é assim, tem misturado nas temperaturas as tradições e as estórias da terra e da água. Nas pessoas o toque liso da pele com o tempero acre-doce do suor.
Moçambicano é paixão e indiferença. Grito e segredo. Carinho e agressão. Elogio e ofensa. Moçambicano no amor é gingão, é quente, é confiante, é...
Moçambicano é tradição de poligamia e importação de monogamia.
Moçambicano é frieza da formalidade de manhã e escorregadio calor húmido de tarde.
Moçambicano controla:
- Tás aonde?
- Ei, telefonas para saber onde estou? Vocês como gostam de perguntar onde estão pessoas!
- Ya, GPS aqui, quero fazer busca e captura.
Moçambicano é gourmet:
- Eu final de semana não como comida da empregada! Nada, aí esposa que cozinha!
Moçambicano não tem segredos:
- Não, eu confio em ti, sou teu, eu! Tu és minha. Vamos lá trocar de celular 24 horas, aceitas?
Moçambicano joga:
- Ya, tu és independente e tal... estamos bem nós, já és quase minha mulher, agora eu vou-te dar as balizas!
Moçambicano educa:
- Mas temos de ter valores.
- Quais?
- Ai é? Então como vais educar um filho?
- Ele vai aprender seus valores…
- Sozinho? Nada! Quando tivermos filho logo que ele desmame fica comigo! Quero ver depois tua independência, vais me ligar TO-DOS os dias!
Moçambicano trabalha em equipa:
- Alô, tás zangada, eu sei, vou te passar meu “advogado”.
- Sabes joana, é bom saberes que… tem contextos específicos… é bom ver que homem africano tem as suas… características, tu já estás aqui há algum tempo e por isso podes entender essas coisas… não é? Já não és da Europa, podes mesmo ser mais tolerante e compreensiva também porque nem todas as pessoas tem a mesma… maturidade, e homem africano nalguns assuntos tem dificuldade em ser ele a avançar, e talvez pudesses ser tu a avançar e a criar as condições necessárias para ele falar contigo e abrir o jogo.
Moçambicano é do mundo:
- Nós não podemos ser namorados. Não a viver aqui! Sim, aqui não íamos nos respeitar, só noutro país… Sim, tinha de ser noutro país. Aqui em Maputo?? Nada, se perde respeito aqui!
Moçambicano é pai:
- Depois eu vou te encher barriga e aí quero ver quem é que vai tchilar até às cinco da manhã na Rua d’Arte até ficar sem voz! Vou ser eu!
Moçambicano tem medo:
- Parabéns pela cerimónia, e… felicidades não é?
- O quê?
- Ya, mais um a deixar o nosso clube…
- Ei, nada! Isto não é nada! Eu sou solteiro na mesma, casar não é de nada, sou solteiro eu! Sol-tei-ri-ssi-mo!
Moçambicano cumpre:
- Homem que é ciumento não é competente!
Moçambicano declara:
- Alô? Eu estou com os copos e o meu coração ainda é teu.
Moçambicano descrimina:
- Ei, eu não gosto de mecha, extensão, não sei quê! Eu gosto de cabelo natural.
- No outro dia, quer dizer – reformula - há um ano, aquelas… essas meninas daqui que mandam sms “papai…” depois chamam essas nomes “papa, pai” e pedem “tou pidir crédito...” Sou banco eu?!
Moçambicano procura:
- Ontem não te encontrei na night.
- Querias? Porque não me ligaste?
- Nada, queria te ENCONTRAR, chegar assim de surpresa e fazer "cheguei".
Moçambicano ameaça:
- TU vais te apaixonar por mim! Eu sou teu homem diz lá! Diz! Ah tas a mentir! Diz com sentimento! Anda lá admitir, tens tanto problema em assumir porque, pah! Orgulhosa. Anda lá, acabaram as eleições, ganhaste.
Moçambicano explica:
- Ya, sabes… desculpa a cena do outro dia mas… ela é muito ciumenta… tu mandaste sms né? Eu estava no banho, ela apanhou e viu, então eu liguei-te só para ela ver uma coisa! Entendes? Desculpa lá, não deu para evitar o desequilíbrio e a ciumeira… Por isso é que a relação tá no fim, não dá pah…
Moçambicano é fiel:
- Ysh! – bate-lhe nas costas - irmão, salvei tua pele, ligou tua dama, ligou aqui, quando estavas lá dentro, eu falei, “neguinho está aqui comigo, só foi no banheiro”.
Está calor.
Privo com moçambicanos que por uns momentos esquecem que sou estrangeira, branca, mulher. Sim, agora e aqui, nesta noite, depois de mais de três copos de Laurentina preta tudo se fala… porque eu não sou a legítima, a mãe dos filhos, a que vive lá em casa.
Estou na esplanada com mais de 10 homens, entre moçambicanos formados no Brasil, jornalistas e desportistas, estrelas de televisão, fotógrafos e frelimistas. A conversa faz-se pelas mesas, sem limites de conhecimentos ou formalidades de contextos, e entre o comentário ao jogo de futebol que passa no ecrã gigante e a conversa sobre as mulheres tudo entra no mesmo ritmo, na mesma efusiva alegria de quem vê um golo.
Na despedida comenta o sul-africano:
- My friend, your wife is beautiful.
- Hey, I am not is wife! C’mon if i was his wife I would not be here!
- Yes, she would be at home…
- Sleeping…
- Ya, a dormir…
- Ya, a mandar mensagens.
- A telefonar… - toca o celular, ele aclara a voz, levanta-se, compõe a camisa – Olá, como estás?
– “Como estás?” Aaaaahhhh é esposa essa!
Está calor, há muita humidade no ar. Agora não chove.
No rádio toca “ela cozinha muito bem, eu é que não como em casa…. Ela me espera tooooooooooda noite, só chego de madrugaaaada…” – ele levanta-se:
- Gramo dessa música, anda cá! Dá lá uma passada comigo!
Dançamos, a camisa dele cola-se ao meu vestido e os suores misturam-se.
Verão é paixão. Para mim é.
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tou pasmo,estive a espreitar os blogs e adorei.
ResponderEliminara forma de contar histórias,a representação do moçambicano real ,a poesia da escrita,são uma ganza!!!
alta sensibilidade!!!
Parabéns mais uma vez
ahahahahahah são uma ganza? love a metáfora.
ResponderEliminarkanimanbo :)
thanks mesmo